terça-feira, 3 de janeiro de 2017



03 de janeiro de 2017 | N° 18731 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

SANTA REETA

Inesperado mesmo foi esse fim de leitura: chorei, discreto mas firme. Tive que bloquear o que ia falar. Emoção genuína, sem cortes. Emoção de quê? De onde veio?

Acabo de ler Rita Lee, uma autobiografia, naturalmente da própria Rita Lee (Globo Livros). E o fim é esse aí, de chorar. Mas chorar de beleza, pelo patético da vida, pelo belo da vida.

Toda grande figura, ainda mais na curva dos 70 anos, tem coisa pra contar, certo, e eu sou leitor entusiasmado de biografias e memórias. Rita Lee está na berlinda quase desde que eu me conheço: eu tinha uns 10 anos quando Os Mutantes estouraram, conquistando o coração dos jovens e das crianças por motivos nada óbvios, ou nada imediatos – ou melhor, me corrijo, por motivos óbvios e imediatos: aqueles três malucos de roupas alegres, evidentemente disparatadas, com cara de quem estava fazendo uma traquinagem e sabia disso mas, né, era o caso de fazer. 

E a Rita, puxa vida: Rita de noiva, com pratos de banda marcial na mão, misturando ingenuidade e grosseria num sorriso sapeca irresistível. Ela era mesmo casada com um daqueles dois irmãos?

Ela conta tudo isso, com bastidores de sua família de origem – mescla de mãe italiana com pai norte-americano, ela católica e ele meio maluco, os dois caipiras paulistas – e infinidade de detalhes da infância, adolescência, juventude, namoros, criação artística, filhos, amigos, brigas, viagens, tudo, até chegar ao presente, num tom que mistura o informal com o denso, o informativo com o irônico mordaz. 

Textos curtos, cortantes, com ritmo de um espetáculo de idas e vindas sem perder o tom geral debochado. Conta lisamente seu estupro, aos seis anos, assim como todo o bololô com os babujentos irmãos Baptista, desde os 60 até há pouquinho. Conta a infinidade de cenas com drogas (ela, como a Chiquita Bacana, transou todas, mas perdeu o tom umas quantas vezes). Sem autopiedade, sem bravata.

E termina me fazendo chorar de beleza, por me dar a ver a ampla e onipresente atuação de seu talento na minha vida, nesse mostrar-se escondendo-se bem (e, nisso, permitindo que nos vejamos a nós mesmos), como todo grande artista consegue. Santa Reeta, que beleza, uma das grandes figuras do país, da língua, do tempo.

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