07 de janeiro de 2017 | N° 18735
ANTONIO PRATA
SEGUNDA, 2 DE JANEIRO
Abro os olhos e vejo, no teste de Rorschach que as sombras pintam no teto do meu quarto, todas as tarefas de 2017. À esquerda, pontilhadas, cada uma das 52 crônicas a serem escritas. Uma faixa perto da porta é a série na qual estou trabalhando. Paralela a ela, há uma outra faixa, tremelicante: deve ser o livro que eu deveria ter entregue em 2016. (Talvez por isso essa faixa trema, como um alarme – ou talvez seja só o vento lá fora, chacoalhando um ramo do jasmim.)
Bem em cima da minha cabeça, uma bola sugere os quatro quilos que, ao logo dos últimos meses, se desprenderam de outros trechos do cosmos e vieram se alojar na minha barriga: quatro quilos que estou determinado a devolver ao universo, com corridas e abdominais, tão logo saia desta cama.
As duas nesgas de luz que se cruzam sobre a janela só podem ser os desejos incompatíveis que insisto em nutrir: trabalhar mais e passar mais tempo com os meus filhos. Se por alguma consequência inédita do efeito estufa a Terra passar a girar mais devagar, criando dias de 36 horas, conseguirei assistir Procurando Nemo, escrever um conto e ler Dostoievski numa mesma tarde. O relógio ao meu lado, contudo, ainda tem só 12 risquinhos. O ponteiro menor se aproxima lentamente do sétimo. Fecho os olhos e me escondo do ano novo embaixo do lençol. “Dormir, dormir, talvez sonhar.” Lembro de ter lido essa frase em algum momento da adolescência. De quem é mesmo?
Na adolescência, as manhãs eram tão ou mais angustiantes, o frio de junho, o despertador me catapultando de sonhos eróticos para a tabela periódica, os adjuntos adnominais, as somas dos quadrados dos catetos. (Cateto deveria ser o nome de um avô bonzinho – eu delirava, ainda meio dormindo, durante as aulas de geometria –, Hipotenusa é uma grã-fina alta, magra e maldosa numa novela dos anos 80). Eu sofria tanto naquelas manhãs do colegial, que, quando li a primeira frase da Metamorfose, do Kafka, pensei: bom, se eu despertasse de sonhos intranquilos transformado num inseto mons- truoso pelo menos não ia ter que ir pra escola.
A escola era obrigatória, a gente fazia porque os pais mandavam, mas a vida adulta é a gente quem inventa. Era o que eu imaginava, aos 13 anos: quando eu for grande, vou morar numa casa com um tobogã da janela do meu quarto direto pra uma piscina, vou ter uma bateria e uma mesa de sinuca na sala, minha alimentação vai ser à base de pudim. Já sou adulto há 22 anos e ainda aguardo ansiosamente por este dia em que vou fazer só o que der na telha.
Ou no tobogã. Toda manhã, no lusco- fusco entre o travesseiro e o holerite, o IPVA, o IPTU, penso se estou fazendo o que eu quero. Às vezes, acho que trabalho demais e não aproveito. Noutras, tenho certeza de que gasto muito tempo com bobagens e deveria me concentrar mais no trabalho.
Rolo de um lado pro outro. Escrever um conto? Ver Procurando Nemo? Entregar o piloto da série. Eu deveria comer mais pudim. Não, eu vou é cortar o pudim. Sai, 2017, me deixa dormir. “Dormir, dormir, talvez sonhar”. Lembrei: é Hamlet, no monólogo do “Ser ou não ser”. Por que não posso ver a sombra que treme e, em vez de pensar nas tarefas não concluídas, lembrar que do lado de lá da minha janela tem um pé de jasmim? Eis a questão.
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