MARCIA FORTES
29/01/2017 02h00
A diversidade unida na Marcha das Mulheres em Nova York
RESUMO Jornalista e galerista brasileira narra sua experiência na Marcha das Mulheres em Nova York, no sábado (21), um dia após a posse de Trump. Mais do que uma série de protestos feministas em diferentes cidades, o movimento foi capaz de reunir diversos grupos contra retrocessos ensaiados pelo novo presidente dos EUA.
"Show me what democracy looks like" (mostre-me o que é a democracia), entoavam dois meninos aparentando dez ou 11 anos, no seio da multidão na rua 42 em Nova York, em frente à estação Grand Central Terminal. "This is what democracy looks like!" (isto é a democracia), ecoavam as milhares de pessoas que os rodeavam naquele início da Marcha das Mulheres, no dia seguinte à posse de Donald Trump como presidente dos EUA. Mais de 400 mil pessoas caminharam ali, entoando canções e motes como "Love not hate makes America great" (amor, não ódio, torna a América grande).
Enquanto a passeata central de Washington era um mar rosa de vasta maioria feminina, em Manhattan a diversidade ganhou as ruas. Ali estavam muitas mulheres e muitos homens, pais e mães, filhos e filhas, crianças e adultos, jovens e velhos, casais gays, judeus e muçulmanos, presbiterianos e católicos, compondo uma rica aglomeração humana de todas as cores e raças. Isso é Nova York, a babel contemporânea que saiu para protestar contra a eleição de um conterrâneo que ironicamente não ecoa a variedade sociocultural de sua cidade, preferindo a ela uma retórica ufanista e populista.
Muitas mulheres usavam gorros orelhudos de tricô rosa (que imprimiram cor à passeata em Washington) distribuídos pela Planned Parenthood, associação que defende o uso de contraceptivos e o direito ao aborto. Ao estampar dizeres como "Vagina ataca de volta" e "Viva la Vulva", algumas faixas faziam acreditar que a manifestação era de fato sobre os direitos femininos vorazmente atacados por Trump (flagrado numa gravação em que se vangloria de forçar mulheres a fazer o que ele quer).
O presidente prometeu indicar para a Suprema Corte um opositor do direito ao aborto. Em resposta, cartazes pontificavam: "Faço o que eu quero com o meu corpo", "Os direitos das mulheres são os direitos civis da humanidade".
Grande parte das mensagens, no entanto, transcendia o tema feminista em busca de algo ainda maior –"Amor é justiça", "Não deixarei que medo e ódio me conduzam". "Role pra frente, e não pra trás", lia-se no encosto da cadeira de rodas de uma senhora.
O rapaz de feições árabes caminhava ao lado de um homem louro e empunhava o estandarte: "Orgulhoso de estar com meu marido". A senhora morena e latina exigia: "Respeta mi existencia o espera resistencia". Uma garotinha levava uma cartolina com a tocante inscrição "Don't deport my tía" (não deporte minha tia). Outra nos lembrava que "A vida dos negros importa", enquanto uma terceira apelava: "Acorde! A mudança climática é real". E alguém resumia a incredulidade geral: "Não acredito que ainda preciso lutar pelos nossos direitos básicos!".
minorias E pensar que todos esses discursos –que derivam de batalhas travadas ao longo dos últimos 50 anos nos EUA– não tinham até então nada que os alinhavasse... agora têm. São ramificações do politicamente correto portado pelas vozes de várias minorias. As minorias unidas transformaram-se numa única maioria que, não obstante as causas específicas nominadas, parecia dizer em uníssono: "Pare de pensar tanto em si mesmo".
O que se viu foi a ressonância do discurso de despedida do ex-presidente Obama: "Para nossa democracia funcionar do jeito que deve nesta nação cada vez mais diversa, cada um precisa atentar para o que diz Atticus Finch: 'Você nunca entende uma pessoa até considerar as coisas do ponto de vista dela, até entrar sob a pele dela e caminhar vestindo-a'. Para negros e outras minorias, isso significa ligar nossas batalhas pessoais por justiça aos desafios enfrentados por outras pessoas neste país. Não apenas o refugiado ou o imigrante ou o pobre camponês ou o americano transgênero, mas também o sujeito branco de meia-idade".
Obama enfatizou: "Para os nascidos nos EUA, significa lembrar-se de que os discursos estereotipados contra imigrantes de hoje já foram proferidos em relação a irlandeses, italianos e poloneses, que, dizia-se, iriam destruir o caráter fundamental da América. Mas, como visto, a América foi fortalecida pela presença desses recém-chegados".
Enquanto Obama cita Atticus Finch –o protagonista de "O Sol é para Todos", romance fundamental de Harper Lee que trata do preconceito racial–, Trump passa ao largo de referências literárias, cita Putin e incita o ódio ao imigrante ao planejar a construção de um muro na fronteira com o México.
Na passeata, um grupo de pessoas de meia-idade carregava a faixa "Construa escolas, não muros". Um cidadão negro rabiscou numa caixa do Fedex: "Sem ódio, sem muro". O mais emocionante era a atmosfera de paz. A manchete do "New York Times" na manhã seguinte classificou a passeata como "desafiadora, porém radiante". O clima era de afeto, não de cólera. Havia indignação, mas não exaltação. Em um cartaz, lia-se: "Sem revólveres, obrigada". Outro encapsulava o espírito da passeata: "Mais fortes juntos".
De repente, o sentimento funéreo e derrotista que me afligia desde antes no Brasil (e que fora agravado pelo resultado da eleição americana) transformou-se em alívio de estar ali, caminhando junto a meio milhão de pessoas em defesa de causas diversas, sem partir para a violência. No meio do mundaréu de gente, uma frase colorida se destacava: "O povo tem o poder de redimir o trabalho de idiotas".
O trajeto anunciado culminava na Trump Tower, na Quinta Avenida. Porém, a uma quadra de distância, policiais do Grupo de Reação Estratégica e voluntários do comitê organizador da passeata bloqueavam a passagem, informando que era necessário dissolvê-la ali mesmo. Uma fileira de policiais dobrava a esquina orientando calmamente as pessoas, que os seguiam serenas.
Penso no contraste entre os tumultuosos movimentos de direitos civis levados adiante em solo americano há décadas e o exercício democrático enraizado que se desenrolou naquele sábado. As batalhas travadas na formação da democracia americana viveram episódios decisivos em Nova York –os gays de Stonewall, o esfaqueamento de Martin Luther King–, essa cidade construída e habitada por imigrantes. Desta vez, as ruas foram tomadas pela determinação de defender uma variedade de direitos e escolhas ameaçados pela variedade de ataques de Trump, mas não pela determinação de atacar.
Penso em Gandhi e em sua resistência não violenta, na estratégia carismática de não odiar aquele que odeia, de não ser como ele.
Penso no novo filme de Martin Scorsese, "Silêncio", no qual o diretor questiona a imposição do cristianismo por jesuítas portugueses no Japão budista do século 17. O roteiro escapa da polarização entre mocinho e bandido, bom e mau, gerando uma ambiguidade maior no seio da qual todos parecem estar a um só tempo certos e errados. O longa encena um debate intelectual sobre diferentes visões de mundo.
Nos momentos finais, o intérprete japonês do inquisidor budista insiste com o padre jesuíta: "Ninguém deveria interferir no espírito de outro homem. Ajudar o próximo é o caminho de Buda e o caminho de Jesus também. Ambas as religiões são iguais nisso. Não é necessário sequestrar ninguém para um ou outro lado quando há tanto para compartilhar".
De volta à rua em Nova York, um cartaz avisava: "Lembre-se do futuro". Outro revelava inteligência refinada e complexa: "A dissidência é patriótica". Um axioma pelo qual se defende que o melhor país possível é aquele cujos cidadãos divergem uns dos outros, num ambiente de respeito mútuo.
O medo também compareceu: "Estou aqui porque estou assustada com meu país", lia-se nas costas de uma mulher. Mas o humor oferecia um contrapeso: "Trump has a tiny tower" (Trump tem uma torre pequenina). Assim como um lembrete que poderia ecoar para bem além das fronteiras americanas: "Caminhamos juntos".
MARCIA FORTES, 49, é galerista, editora e jornalista
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