quarta-feira, 18 de janeiro de 2017



18 de janeiro de 2017 | N° 18745 
MARTHA MEDEIROS

Sobre cada um de nós

É difícil falar de um filme sem dar spoiler, ainda mais quando se trata de um thriller, então vou me reter a uma cena aparentemente sem importância do eletrizante Animais Noturnos, de Tom Ford. São três narrativas interligadas, e uma delas mostra o início do relacionamento entre um aspirante a escritor e sua jovem esposa. Cena: ela está deitada no sofá terminando a leitura do primeiro original do marido e ele rói as unhas aguardando o veredito. Quando ela termina, em vez de purpurina, joga um balde de água fria no coitado. A trama não a seduziu. Ela arrisca um conselho: “Não escreva sobre você”. No que ele rebate: “Todos escrevem sobre si mesmos”. E sai da sala frustrado.

Cerca de 20 anos depois, já não formam um casal. Ela está instalada num segundo e entediante casamento, quando recebe pelo correio o manuscrito de um novo livro do ex-marido, que pede mais uma vez a sua opinião. Ela então começa a ler e não consegue largar, pois, além de cativante, é uma história aterradora e com consequências trágicas, ou seja, nada do que foi escrito aconteceu de fato – pelo visto, ele seguiu o conselho dela.

E aqui tergiverso, levantando esta questão recorrente sobre o ofício do escritor. Sempre escrevemos sobre nós mesmos ou somos capazes de inventar uma boa história e contá-la sem nenhuma interferência do que nos passa dentro?

Quem se dedica a romances policiais talvez alcance o desprendimento total. Agatha Christie, George Simenon, Raymond Chandler e tantos outros que escreveram obras em série eram máquinas de produção de textos e suas questões particulares pareciam pouco influenciá-los. Alguns autores brasileiros, gaúchos inclusive, me dão a mesma impressão: não se misturam com seus personagens. Suas criaturas não revelam nada do que acontece na vida prosaica do criador.

Ainda assim, sei que estou enganada. Porque ao sentar em frente ao computador para escrever, fazemos uma escolha. Escolhemos o tom, escolhemos a atmosfera, escolhemos ir por um caminho e não por outro, e essas seleções vêm daquilo que nos move, interessa, apavora, incomoda ou diverte intimamente. Livros também têm DNA.

Bem disfarçado, mal disfarçado ou às claras: nossa ficção nos espelha – todo tipo de arte, aliás, é um manifesto pessoal. Pode ser transmitido com várias camadas sobrepostas, mas a nossa nudez está ali, encoberta e intuída. Animais Noturnos é, toscamente resumindo, um filme sobre um livro de suspense que parece não ter nada a ver com nada, mas o sentimento do autor grita e sua principal leitora escuta. Por mais longe que a imaginação vá, alguma coisa sempre é dita ao pé do ouvido.

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