07 de fevereiro de 2014
| N° 17697
DAVID COIMBRA
Os fora da lei
Paulo Francis era brilhante, mas,
volta e meia, irresponsável. Em sua coluna, ele não só arremetia e assacava;
ofendia. E suportava com galhardia irônica os desafetos, sabendo que não o
atingiriam, até que um deles, justamente o presidente da maior empresa do
Brasil, a Petrobras, resolveu processá-lo. Mas não no Brasil, para onde Francis
escrevia, e sim nos Estados Unidos, de onde ele escrevia. Aí ele baqueou. Sabia
que, mesmo sendo improvável que um tribunal americano aceitasse o processo, se
isso acontecesse ele poderia ser arrastado para o pântano da destruição
econômica, porque uma condenação da Justiça norte-americana é inclemente.
O que Francis fez, diante de
tamanha vicissitude? Morreu. Seu coração explodiu de angústia ante a mera
possibilidade de ir a julgamento nos Estados Unidos.
A sociedade norte-americana foi
forjada nos tribunais. Você assistiu ao bom filme O Mordomo da Casa Branca? É a
história menos do mordomo e mais da evolução dos direitos dos negros nos
Estados Unidos. E como cada conquista dos negros foi consolidada, desde o tempo
da escravidão até Obama? Pela lei. Depois que uma lei igualitária era
promulgada, uma etapa estava vencida. Quer dizer: feita a lei, encerrado o
assunto. A não ser que se mude a lei.
Esse o grande trunfo dos Estados
Unidos como civilização: os americanos submetem-se, temem e conhecem a lei.
Sabem que, se não respeitarem o sistema, o país não vai funcionar e que, se o
país não funcionar, eles vão perder. Todos perdem.
O Brasil é um país de muitas
leis, mas quem se importa com elas? Li dias atrás, na ZH, a entrevista daquele
rapaz que é líder do grupo Fora do Eixo, o Capilé. Ele é articulado, tem uma
retórica semelhante à dos antigos comunistas, virgulada por lugares-comuns e
esticada por tergiversações, mas bem concatenada. O grupo Fora do Eixo, por
exemplo, não é grupo; é “coletivo”.
Seja. Grande parte do que disse o
Capilé é interessante, mas houve um ponto em que ele demonstrou como a lógica
que o move é enviesada. Contou que o seu grupo... vá lá, coletivo... pretende
instalar-se na Cinelândia, no Rio, e até fazer uma Constituição própria. E
disse duvidar que o Estado os tire de lá. “O Estado só vai entrar com diálogo.”
Seu primeiro erro de raciocínio é
achar que tem direito de privatizar um espaço público. O “coletivo” acredita
que pode ocupar a Cinelândia baseado em suas boas intenções. Certo. E se o Eike
Batista jurar que tem boas intenções, ele também pode ocupar a Cinelândia? Ou o
que vale para o Fora do Eixo não vale para o Eike Batista? Há leis diferentes
para um e outro?
O segundo erro é achar que
governo e Estado são a mesma coisa. Capilé acredita que o Estado está sobre
ele, ou contra ele, não entende que ele faz parte do Estado e que o Estado tem
de funcionar sempre com o mesmo sistema, seja qual for o governo.
Capilé e seu coletivo
privatizarão a Cinelândia, se quiserem. Assim como a CUT, que ameaça fazer
Porto Alegre entrar em colapso, fará Porto Alegre entrar em colapso, se quiser.
Capilé, CUT, grandes tubarões da telefonia, empresas aéreas, ricaços,
punguistas da Praça da Alfândega, playboys da Oscar Freire, nenhum deles teme a
lei. Alguns, como Capilé e a CUT, acham-se superiores à lei. Afinal, a razão
presuntiva está com eles, e eles podem fazer o que bem entenderem, se estiverem
com a razão. Outros, como os playboys, os ricaços e os tubarões, têm tanto
poder, que a lei não os alcança. E os punguistas estão se lixando para a lei
porque não têm nada a perder.
No Brasil, quem está muito acima
ou muito abaixo da lei ri-se dela. No Brasil, só teme a lei que está dentro da
lei. Só quem precisa de carteira de trabalho assinada, RG e CPF. Tristemente,
eu e você.
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