03 de fevereiro de 2014
| N° 17693
LETICIA WIERZCHOWSKI
Um
janeiro com Virgínia
Passei as minhas férias
acompanhada de Virgínia Woolf. Sentada à beira-mar, naveguei pelos seus contos,
alguns de uma pungência que me trazia lágrimas aos olhos. Muito azul e muito
verde, e passeios londrinos, e as idiossincrasias de personagens que cruzavam
por mim como pequenos cometas. O Holofote, belíssimo conto sobre o tempo.
Lappin e Lapinova, quando o amor morre na falta de alegria. A destruição da
vaidade no belo O Legado. Foi bom ter V. Woolf ao meu lado e dar voltas por
suas descrições meticulosas, acompanhando os volteios da sua prosa genial –
levada por ela como um barco pelas ondas, senti-me reconfortada, compreendida e
até mesmo incentivada.
E, depois de ler Contos
Completos, vi-me obrigada a voltar novamente para um dos meus livros de
cabeceira, Rumo ao Farol. Um dos mais belos, sucintos e delicados romances que
jamais li. A história, a princípio, não levanta muita poeira – como toda a
narrativa de Virgínia Woolf, a trama se constrói de pequenezas aparentemente
irrelevantes, cuja dramaticidade se vai desvelando sob a implacável força da
sua pena. Em Rumo ao Farol, conhecemos a história da família Ramsay, que vai
passar um verão na sua antiga casa de praia, levando alguns agregados.
Nesses dias de calma e de
descanso, seguimos pela mão da sra. Ramsay, enquanto ela cuida dos filhos e do
marido – mãe de oito crianças, ela sente em si o júbilo e o terror da vida,
sabe que a tristeza está à espreita em cada desvão, que o tempo, irrevogável,
leva as gentes para longe, para a morte ou o desengano, e que a infância dura
quase o mesmo tempo que um verão.
A sra. Ramsay sabe que a conta da
estufa será alta demais, que a guerra se aproxima, e que cada mísero segundo
escoa irremediavelmente para o passado. Ela sente tudo isso sob a pele, sob o
xale escolhido pelos filhos para o jantar especial preparado por Mildred, a
cozinheira, enquanto a família e os amigos se reunem à mesa talvez para uma
última noite de alegria. Sim, a Sra. Ramsay é o esteio de muitas vidas; amada
por uns, adorada por outros, invejada pela pobre Lily Briscoe, a pintora
solteirona agregada dos Ramsay.
E então o tempo realmente passa,
o verão se esvai, e a casa é abandonada à sua solidão de cadáver. A casa, sem a
Sra. Ramsay, está como que morta, devastada pelos ventos. Somente o farol
ilumina seus recantos escuros, seus quartos vazios de alegria, seus velhos
tapetes e móveis – e assim Virginia Woolf faz a tristeza deixar o seu
esconderijo, causando os estragos que deve fazer. E muitos anos passam e nada
mais será como antes. Mas um dia, a velha arrumadeira dos Ramsay recebe um
breve aviso: a família voltará à casa de praia.
É preciso arrancá-la do
esquecimento, desenterrá-la de sob a areia, é preciso usurpá-la dos insetos e
cobras e fantasmas. E, lendo tudo isso, a gente fica com lágrimas nos olhos,
porque dá pena ver a vida passar. Ah, sim: a casa ao final é apenas a cicatriz
da grande ausência. Ela é aqueles que nela faltam. E sim, a vida pode doer sem
fazer barulho, pode doer como num poema. Mas também poder brilhar, diria talvez
a Sra. Ramsay. E me repete, sempre e sempre, a belíssima prosa de Virgínia
Woolf.
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