03 de fevereiro de 2014
| N° 17693
L. F. VERISSIMO
À beira do abismo
Até hoje penso naquela viagem
como uma experiência surreal. Talvez, com o tempo, eu tenha exagerado seus
perigos e seus mistérios, mas na minha memória ela ficou como uma passagem
estreita entre tragédia e encanto, que tanto poderia terminar em reminiscências
indolores como esta, muitos anos depois, quanto no fundo de um abismo.
Tínhamos alugado um carro em Los
Angeles para irmos a San Francisco pela estrada da costa. Depois de passar pela
praia de Malibu, rumo ao Norte, a estrada começa a subir e em pouco tempo nos
vimos numa via de apenas duas pistas, contornando as montanhas, com uma
magnífica vista do pôr do sol no Pacífico à nossa esquerda. Até aí, tudo ótimo.
Curvas sinuosas atrás de curvas sinuosas, mas nada que um motorista experiente,
de vida limpa e confiante no seu braço, não pudesse enfrentar. Mas com a noite
veio a cerração, e dentro da cerração a chuva.
E eu passei a não ver nada, a só
enxergar a curva sinuosa seguinte quando já estava em cima dela, obrigado a
frear, com o risco de levar uma bangornada (termo de origem obscura, não
encontrado em dicionários, o mesmo que chapuletada, só mais forte) de algum
carro que viesse de trás, às cegas como eu, e ser atirado para a pista da
esquerda, onde um caminhão gigantesco nos pegaria e nos lançaria no Pacífico,
em chamas. Pensei: só falta o freio falhar para isto se transformar num filme
de suspense. Um filme que eu decididamente não queria ver.
Deslumbrei, no meio da bruma
letal, o anúncio de um motel. Salvação! Entramos na recepção do motel – que não
era a recepção de um motel, ou pelo menos de um motel convencional. Um enorme
salão atapetado e mal iluminado. Um clima fantasmagórico. Parecia que tínhamos
interrompido um coquetel. Pessoas jovens e elegantes, segurando drinques
coloridos, nos examinaram com divertida curiosidade.
O que era aquilo? Cheguei a
pensar que o acidente tinha acontecido, que o caminhão tinha mesmo nos jogado
no abismo, e que estávamos no céu, ou no mínimo numa antessala. Uma moça nos
sorria de trás de uma mesa que, deduzi, era onde deveríamos nos registrar.
Recuamos, cautelosamente, e saímos pela porta com alguma pressa. O risco da
estrada parecia menor comparado ao que nos esperava naquele saguão lúgubre –
que até hoje eu não imagino o que seria.
A poucos quilômetros dali,
encontramos outro motel, simples e nada ameaçador. Dormimos bem e na manhã
seguinte retomamos a estrada, agora sem cerração ou chuva. O Pacífico
continuava no lugar, à nossa frente estavam Big Sur, Carmel, Monterey e a bela
San Francisco. A volta de carro para Los Angeles foi pelo interior, longe dos
abismos, por uma estrada reconfortadoramente reta.
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