01 de fevereiro de 2014
| N° 17691
O PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO
MORENO
Judiar
A primeira consulta vem de um
gaúcho que mora no Rio de Janeiro, ex-aluno e admirador, como eu, do professor
Celso Luft (o que, nesta coluna, já dá direito de puxar um banco e ir
sentando). Ele é gentil, mas seu raciocínio é tortuoso: “Gostaria de saber se a
expressão baixo calão, usada pelos dicionários para classificar os palavrões,
não poderia ser substituída por baixo escalão. Acontece que no dicionário do
prof. Luft consta que um dos significados de escalão é “nível”; logo, baixo
escalão teria o sentido de “baixo nível”, exatamente o conceito que se aplica
aos palavrões – o senhor não concorda?”.
Sinto muito, prezado amigo, mas
não posso concordar; calão nada tem a ver com escalão. Escalão provém do Latim
scala, “escala, escada”, que produz também escalar; é por isso que falamos,
numa estrutura hierarquizada, em cargos ou postos que vão do baixo ao alto
escalão. Calão, por sua vez, vem de caló, como os ciganos chamavam a si
próprios e ao seu próprio idioma. Pela desconfiança histórica que os povos
europeus votavam (ou votam) aos ciganos, o termo passou a designar “língua
vulgar, grosseira, de pessoas de baixa extração”. Como estás a ver, entre calão
e escalão há uma mera semelhança casual, a mesma que existe entre adulto e
adúltero ou banha e banho, vocábulos que nada têm a ver um com o outro.
A segunda consulta vem de São
Paulo, capital, assinada por Gabriel, um jovem que precisa de algo mais
substancioso que uma simples aula de Português. Escreve ele: “Prezado prof.
Moreno, tenho apenas 14 anos mas acompanho sua coluna pela internet. Gosto
muito do bom humor e da franqueza com que o senhor trata as pessoas e por isso
me animei a lhe fazer uma pergunta. Ontem eu li num site que o holocausto da
Alemanha nazista não passa de uma invenção (que eles chamam de “holoconto”) e
que a palavra judiar vem das maldades que os judeus costumavam cometer contra
os cristãos. Essa explicação está correta? É impressão minha ou o site é meio
racista?”.
Meu caro Gabriel, não fosse pela
tenra idade eu não desculparia tuas dúvidas. “Meio” racista? Para começar, ele
faz, a meu ver, duas coisas imperdoáveis: primeiro, nega o horror absoluto que
foi o Holocausto; segundo, e talvez pior ainda, procura fazer humor com algo
que jamais será engraçado (convenhamos, “holoconto” é uma blague de insuperável
mau gosto). Já que frequentas a internet, procura e acharás dezenas de
depoimentos e documentários que vão ter dar uma visão aproximada dessa
inexplicável explosão da maldade humana.
Como diz Giorgio Agamben no
início de seu livro sobre Auschwitz (a tradução é minha), “No campo de
concentração, uma das principais razões para sobreviver é a ideia de um dia
poder testemunhar sobre o que aconteceu” – exatamente para neutralizar esses fanáticos
do lado negro da Força que vivem tentando, dos modos mais delirantes, apagar de
nossa memória o que nunca deverá ser esquecido.
É também um equívoco a explicação
que eles dão para judiar. É importante lembrar que as judiarias (ou judarias,
como eram mais conhecidas) eram os bairros judeus do Portugal antigo, similares
às mourarias, onde se concentravam os muçulmanos. Nas Ordenações Afonsinas, que
datam mais ou menos do descobrimento do Brasil, lê-se, no título 86: “De como
os judeus hão de viver em judarias apartadamente”. Nas cidades maiores de
Portugal, onde esse confinamento era imposto com rigor, era proibido ao judeu,
sob graves penas, “andar fora da judaria depois de tanger a Ave Maria”, como
nos explica o dicionário de Bluteau.
O verbo judiar, ao que parece,
era usado justamente para descrever as incursões que os cristãos faziam nessas
judarias para infernizar a vida de seus moradores – daí o valor que este termo
tem até hoje de “maltratar, tratar com escárnio”. “Vamos judiar!”, portanto,
seria um sinônimo para “Vamos mexer com os judeus”. Contudo, contaminada por
uma longa tradição de preconceito racial e religioso, a cultura popular (e,
portanto, nossa língua) preferiu ver o judeu como o sujeito deste verbo (aquele
que judia), quando, na verdade, ele era apenas o seu objeto direto (a vítima,
ou seja, aquele que é judiado).
O único dicionário que registrou
esse ponto de vista foi o Aurélio – mas apenas até sua segunda edição, a que eu
uso, apelidada por mim de Aurélio-vivo (acredite, prezado leitor, esta é a mais
confiável de todas, pois as edições seguintes, feitas depois da morte do
mestre, continuam descendo vertiginosamente ladeira abaixo). Ali, o verbete
judiar abre com uma definição que inexplicavelmente foi retirada das edições
posteriores: “tratar como antigamente se tratavam os judeus: escarnecer,
maltratar”.
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