01 de fevereiro de 2014
| N° 17691
CLÁUDIA LAITANO
Reclamildo Pereira
Como passageira de táxi, tento me
comportar como uma moça educada em uma sala de visitas. Não peço para desligar
ou trocar a estação do rádio, mesmo que isso signifique ouvir 25 minutos de
debates sobre a lesão no menisco do zagueiro do XV de Piracicaba. Não costumo
puxar conversa, mas tento ser uma interlocutora interessada. No verão, não peço
para ligar o ar, a menos que a opção seja oferecida e que o calor seja
insuportável.
Ao contrário dos teatros locais,
os táxis de Porto Alegre costumam ter sistemas de refrigeração que funcionam. A
maioria dos carros já chega com o ar-condicionado ligado e tinindo, não só para
agradar o passageiro, mas porque nem mesmo o motorista aguenta trabalhar neste
calor da gota. Foi por isso que estranhei quando um motorista me perguntou esta
semana se eu queria que ele ligasse o ar. Dentro da minha política de mínima
interferência no ambiente alheio, disse que não precisava e menti que o
ventinho na janela bastava para refrescar.
Era um senhor com idade para já
estar aposentado há algum tempo, e talvez por isso antes mesmo de ter dito a
primeira palavra já tinha ganhado minha simpatia. Fiquei pensando quantos
verões iguais (piores é impossível) ele deve ter enfrentado sem o conforto de
um ar-condicionado no carro ou em casa. Talvez a decisão de manter o ar
desligado tivesse menos a ver com a pequena economia de combustível do que com
a afirmação de um ponto de vista.
Talvez se orgulhasse de possuir
um tipo de resistência ao calor que nós, a classe média split-dependente, perdemos
nos últimos 10 ou 15 anos. Eu, que dormi toda a infância e boa parte da vida
adulta sem ar-condicionado, hoje seria capaz de abrir mão de todos os
eletrodomésticos e móveis da casa (e talvez até da própria casa) para não
passar calor à noite. Viramos todos uns maricas térmicos, pensei, e o planeta
vai acabar porque um dia vai faltar energia para abastecer a frescura (nos dois
sentidos) de tanta gente. Aquele motorista era um herói, um mártir do verão de
Porto Alegre, o último gaúcho capaz de enfrentar 40ºC sem o mimimi dos guris de
apartamento.
Mas aí o velhinho puxou papo – e
o monólogo que se seguiu foi um showroom de insatisfações de variadas origens.
Não falou nada do calor, por motivos óbvios, mas reclamou da greve, do
prefeito, das obras, da Copa, da Dilma, do governador, dos gays da novela... e
aí parei de ouvir porque desci do táxi.
Trabalhar sem ar-condicionado,
afinal, não era uma exibição de estoicismo ou fibra moral, como eu havia
fantasiado: 40°C e trânsito parado era tudo o que aquele homem precisava para
fermentar seu descontentamento generalizado com a humanidade na temperatura
ideal. Saí do carro menos incomodada com o calor do que com a gastura, que é
aquele mal-estar difuso causado por um barulho irritante ou por pessoas que
ostensiva – e inadvertidamente – reclamam de tudo o tempo todo.
Já faz algum tempo que eu deixei
de acreditar em qualquer tipo de segredo mágico para a felicidade. A gente se
vira do jeito que pode, e em geral nada é muito ruim ou muito bom para sempre –
mais ou menos como o tempo em Porto Alegre. Já a receita para ser infeliz (e
fazer os outros infelizes) me parece simples e infalível – e dou aqui de graça
como dica de antiajuda: para quem faz o estilo Reclamildo Pereira, o que está
ruim sempre pode ficar pior. Inclusive o calor.
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