terça-feira, 6 de março de 2012



06 de março de 2012 | N° 17000
DAVID COIMBRA


Mil-folhas e uvas japonesas

Quando eu era guri nós comíamos uma fruta chamada uva japonesa. Não se tratava de uva de verdade, era outra coisa, uma maçaroca com forma aproximada de cacho de uvas, mas que não tinha nada a ver com uva. A gente mastigava aquilo, sentia o gosto meio doce do caldo e depois cuspia o bagaço, ficando com um travo de terra na boca. Não se podia dizer que fosse saboroso, mas era exótico comer algo do Japão, até porque suspeito que naquele tempo não havia restaurante japonês em Porto Alegre.

Nunca mais vi uva japonesa. Será que ainda existe? Será que era mesmo japonesa?

O que existe agora é quiuí. Ou kiwi, tanto faz. Que, parece, vem da China. Quer dizer: quase do Japão. Meu filho come kiwi com muita naturalidade, nasceu vendo kiwis e mastigando-os sem pensar no assunto, mas eu não. Eu sempre encaro kiwis com estranheza, olho para um e reflito:

– De onde veio isso?

Como é que as coisas surgem e desaparecem da nossa vida? Um dia eu deixei de ver uvas japonesas e comecei a ver kiwis. E nem notei.

Digamos uma mulher que tenha se tornado gorda. Era magra, ficou gorda. São duas condições diferentes. Ou seja: ela MUDOU de condição. Houve um momento em que isso aconteceu, um instante mágico de transformação. A partir daquele exato minuto, ela passou a ser vista como uma gorda. É fascinante. Gostaria de ter testemunhado esse momento único. Ali, diante dos meus olhos, ela daria uma dentada no mil-folhas e, blop, viraria gorda. Poderia escrever em seu diário ou propalar para o mundo, no futuro:

– No dia 6 de março de 2012, às 10h da manhã, quando os glicídios daquele mil-folhas se espalharam pelo meu ser, tornei-me a gorda que hoje sou.

Se o exemplo não lhe comove, porque, afinal, nem todos ficam gordos, pense, então, na velhice. Todos ficam velhos. Ou, pelo menos, todos os que têm sorte. Se tudo der certo, um dia você será um velho. Será um dia especial, um dia único.

Antes desse dia, você não era um velho. Talvez não fosse jovem, mas velho não era. Era um adulto, na plenitude do seu vigor. Agora, tornou-se velho. Não seria formidável poder ver essa transformação? Identificá-la? Você acorda, levanta-se da cama, olha-se no espelho e conclui:

– Hoje, virei um velho.

A partir daí, entraria em fila especial no banco e não pagaria mais passagem de ônibus.

Sensacional.

Mas não é o que acontece. As mudanças se dão sem que percebamos. Uvas japonesas desaparecem das nossas vidas e kiwis surgem em seu lugar, jovens se transformam em velhos e magras em gordas, e não nos damos conta do momento em que isso ocorreu.

Salvo em retrospectiva. Hoje sabemos que o mundo mudou com a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 e sabemos que o mundo mudou com a queda das Torres Gêmeas em 2001. Sabemos, também, quando o futebol brasileiro deixou de ser o mais belo do planeta.

Foi na Copa de 2002.

Ali, na prática, encerrava-se o ciclo dos maiores jogadores do Brasil desta geração: Romário, Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho, os quatro erres. Romário já havia sido banido, os outros três se adaptaram a um esquema pragmático, de resultados, sem muito espaço para alegorias. Era para vencer, ponto. Ali houve um rompimento.

De alguma forma, os jogadores não jogavam mais para se divertir; jogavam porque participavam de um grande negócio. Eram empresários, rodeados de interesses. O futebol brasileiro foi deixando de ser espontâneo e divertido para atender à exigência de vencer. Foi ali, exatamente ali, em 2002, que o futebol brasileiro envelheceu. E saber disso agora talvez não seja tarde demais.

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