sexta-feira, 30 de março de 2012


Carlos Heitor Cony

O homem que vendeu a alma

'La Bohème' ficou, no consenso de puccinianos ou antipuccinianos, como a sua obra-prima

TUDO SE explica: Puccini vendeu a alma ao demônio. Foi essa -e não podia ser outra- a explicação de seus rivais e inimigos, roídos e moídos não pelo sucesso popular e financeiro das obras do compositor, mas pela beleza simples, humana, quase cafona, de suas partituras.

De Monteverdi a Menotti, todos os autores de ópera, incluindo Mozart, gostariam de ter escrito alguns dos momentos puccinianos que definem, justificam e eternizam o gênero lírico no que ele tem de mais autêntico.

Nem Verdi em todo o seu esplendor nem Wagner em sua empáfia conseguiram aqueles acordes que atingem não a arte pela arte (Puccini nunca foi disso), mas o belo pelo belo. E, dentro do seu universo, "La Bohème" ficou, no consenso de puccinianos ou antipuccinianos, como a sua obra-prima por excelência, pois é uma ópera intrinsecamente pucciniana.

Nem sempre solistas, coro, orquestra, "régie", cenário e vestuário mostram-se adrede para uma "La Bohème" a preceito. É ópera que requer clima e trabalho. Requer paixão.

Se o sucesso internacional e histórico da ópera, em si mesma, se deve ao gênio musical de Puccini, o triunfo de cada récita também pode ser creditado aos seus montadores famosos, entre outros, Luchino Visconti, Ingmar Bergman, Franco Zefirelli, e até mesmo Margarita Wallmann, com seus cabelos brancos, sua perna aleijada, sua visão da arte, do palco, da vida.

Já perguntei a vários cantores, aqui e no exterior, sobre a ópera que consideram a melhor, a mais próxima da sensibilidade de cada um. A resposta, geralmente, sai enrolada para um tipo de pergunta assim. Alguns complicam, fazem distinções sutis, escondem o jogo como podem.

Mas depois de um aperto, todos terminam admitindo: "Bem cantada, bem encenada, 'La Bohème' pode não ser a mais nobre das óperas, mas é a mais ópera de todas".

Afinal, o temperamento de cada um se identificará com a discutível e não demonstrada poesia de Rodolfo, a inacabada pintura de Marcello, a música não ouvida de Schaunard, a filosofia (essa sim, explicitada) de Colline, que não transcende a uma ária sentimental dedicada ao próprio capote. Conheço filósofos piores.

Cada vez mais, os divos e divas se recusam a cantar nos ensaios gerais, preferindo guardar a voz para o espetáculo. Não é nada, não é nada, esse vedetismo acaba prejudicando os grandes momentos líricos; dificilmente a orquestra tem condições de se entrosar com o canto e vice-versa. Lembro de anos atrás, quando Mario Del Monaco fazia três, quatro ensaios com a orquestra, mandando brasa na sua poderosa e brilhante voz. Na noite do espetáculo, a voz de Monaco não estava "stanca". Pelo contrário: ficava sempre melhor.

Muitos garantem que Puccini se apaixonava pelas mulheres que criava: Tosca, Butterfly, Manon, Mimi. Uma intérprete pucciniana sofre, geme e morre de amor, não por Mario Cavaradossi ("Tosca"), por Rodolfo ("La Bohème"), pelo tenente Benjamim Franklin Pinkerton ("Madama Butterfly") ou por Des Grieux ("Manon Lescaut"). A paixão delas, o "outro", que está invisível, mas presente em cena, é sempre Puccini.

Visitei diversas vezes a sua casa em Torre del Lago, não muito longe da sua Lucca natal, uma das cidades mais típicas da Toscana. Junto com suas armas de caça, estão as fotos de suas grandes intérpretes, com dedicatórias reveladoras de uma paixão nem sempre utópica.

Impressionou-me a da primeira soprano que cantou "Madama Butterfly", uma japonesa que transcreveu, em cima da foto, um dos versos que ela canta no dueto final do primeiro ato: "Rinnegata... e felice" -renegada... e feliz.

Realmente, o compositor era um "homme à femmes". Chegou a ter um problema com a polícia quando uma de suas empregadas suicidou-se por amor a ele. Outras também o fizeram, em Paris, Milão, Viena e Nova York.

Aliás, o sucesso de Puccini nos Estados Unidos foi enorme. Por ocasião de sua primeira visita, o "New York Times" comparou a sua recepção à de Charles Lindbergh, o primeiro aviador a atravessar só o Atlântico, pilotando o Spirit of St. Louis.

Thomas Edison, o maior inventor de seu tempo, deu a Puccini um de seus primeiros gramofones, com a enorme tuba em ouro, na qual mandou gravar: "Outros depois de mim farão inventos melhores, mas ninguém fará melodias mais belas do que Puccini".

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