sexta-feira, 16 de março de 2012



Meu "uai-cai"...
RUBEM ALVES

Agora, na velhice, minha grande preocupação é o fim do mundo. A Terra está morrendo

ALGUNS DOS meus livros estão espandongados: lombadas descoladas, folhas soltas, outras rasgadas. Estão assim pelas muitas vezes que com eles fiz amor repetido e furioso. Outros livros estão perfeitos. Nunca desejei fazer amor com eles.


De todos os meus livros os que mais amo e que, por isso mesmo, estão em pior estado, são as obras de Nietzsche. Quando li Nietzsche pela primeira vez eu me espantei e disse: "Esse homem passeia por lugares da minha alma que não conheço!" Hoje é meu companheiro.

Ele escreveu em alemão. Mas o meu alemão é capenga. Tenho de usar o dicionário como bengala. Com isso perco o essencial: a música da sua escritura. Por isso valho-me das maravilhosas traduções de Walter Kaufmann para o inglês. Para se traduzir Nietzsche não basta saber alemão; é preciso ser poeta.

Agora, na velhice, minha grande preocupação é o fim do mundo. A Terra está morrendo. Os cientistas já fazem cálculos acerca dos poucos anos que lhe restam. Convivo bem com a idéia da minha morte. Mas a idéia da morte da Terra é-me insuportável. Até já escrevi um "uai-cai".

"Uai-cai" é o jeito mineiro de fazer hai-kais. "Uai", para expressar o assombro ante a vida. E "cai" para exprimir a tristeza de ver cair o que estava lá no alto. Meu "uai-cai" é assim: "O último sabiá canta seu canto.. Que pena! Já não há ninguém para ouvi-lo..."

Relendo a "A Ciência Alegre" de Nietzsche reencontrei-me com o seu texto mais famoso, aquele em que ele diz que "Deus morreu". E de repente, à medida em que eu o degustava antropofagicamente, o texto foi se apossando de mim, como se fosse vinho. Fiquei meio bêbado. E, na minha embriaguez eu troquei umas palavras. O texto ficou assim: A cena: um louco grita numa praça. Dirige-se àqueles que ali estão.

Eles riem e zombam. "O que aconteceu com a nossa Terra?", ele gritou. "Pois vou lhes dizer. Nós a matamos -vocês e eu. Todos nós somos seus assassinos.

Mas como é que fizemos isso? Como é que fomos capazes de beber os rios e comer as florestas? Quem nos deu a esponja para apagar os horizontes do futuro? O que fizemos quando partimos a corrente que ligava a Terra à Vida? Para onde ela irá? Vagará pelo Nada infinito? Esse hálito que sentimos, não é o hálito da morte? E esse calor! Os gelos estão se derretendo.

Já se vê o cume negro do Kilimanjaro, outrora vestido com a brancura da neve. O mar subirá. O sol está mais quente e mortífero. Temos de nos proteger contra os seus raios. E esse barulho que ouvimos em todos os lugares, o ruído das fábricas, o barulho das bolsas de valores não será, porventura, o barulho dos coveiros que a enterram? O ar que respiramos é o ar da decomposição.

A Terra está morta. Nós a matamos. Como poderemos nós, os assassinos da Terra, nos confortar a nós mesmos? A Terra, extensão dos nossos corpos, a mais sagrada, sangrou até a morte sob nossos punhais... Quem nos limpará desse sangue?"

Relatou-se depois que, naquele mesmo dia, o louco entrou em várias bolsas de valores, bancos e indústrias e lá cantou o "Réquiem para a Terra Morta". Retirado de lá e compelido a se explicar, a cada vez ele disse a mesma coisa: "Que são esses templos do progresso se não os sepulcros da Terra?"

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