sexta-feira, 30 de março de 2012



30 de março de 2012 | N° 17024
PAULO SANT’ANA


A minha covardia

Eu tenho de ter cuidado quando falo em determinadas categorias de pessoas, porque esta coluna encerra uma delicadeza: eu lido com um canhão de leitura. Sendo assim, firo muitas suscetibilidades.

Assim, quando manifesto, todo orgulhoso, compaixão pelos cegos, muitos cegos me lascam o pau dizendo que a cegueira não merece compaixão, eles são felizes e realizados em sua condição.

Outro dia, recebi um e-mail de um dentista que se sentiu ofendido porque eu escrevi que tenho medo de dentista. Insinuou que eu estaria por alguma forma jogando os dentistas contra seus clientes.

Ora, bolas! Se eu escrevesse numa dessas colunas que ninguém lê e que mesmo assim continuam a ser publicadas anos a fio, o problema seria menor ou não existiria, mas aqui, neste canhão de leitura, eu lido com muita flor de pele e fraturas expostas.

Que diabo, só o que escrevi é que sou covarde e tenho medo de dentista. Minha dentista só mexe em meus dentes, por exigência minha, com anestesia.

Ainda assim, além de lidar com as obturações e tratamentos de canais a que me exponho, minha dentista, Marisa Motta Martins, é obrigada a lidar com minha covardia.

Não deixo que ela cavouque nos meus dentes, que ela lime com a broca os meus dentes, sem importuná-la com as manifestações do meu medo covarde.

Interrompo a cada movimento dela a sua ação. Assim, ela leva o dobro de tempo para me atender do que levaria para atender outro cliente.

Quando minha dentista me garante de pés juntos que não vai me doer, eu brinco com ela: “Sua palavra não vale para mim um tostão furado”.

E o pior (ou melhor) é que não dói mesmo, nunca doeu. E, mesmo jamais tendo doído, ainda assim permanece meu terror.

Tratamento de canal para mim é equivalente àquela sensação que paira sobre Bagdá, Afeganistão e Síria, a de que a qualquer momento uma bomba vai explodir.

Esses dias, ouvi aflitamente de minha dentista ela pronunciar a palavra “implante”. Não sei o que é, mas ouvi dizer que colocam naquele osso que fica abaixo da gengiva um suporte de aço que vai sustentar um dente postiço.

Como é que é? Então um dia poderei ser obrigado a um implante no dente, meu osso sendo esburacado para que se coloque nele um pino que vai sustentar outro dente?

Conte outra, doutora. Isso a senhora só consegue de mim se for com anestesia geral.

Eu não sei como é que tenho permitido nos últimos anos que os otorrinos Luiz Lavinsky e Sady Selaimen façam limpeza de meus ouvidos. Limpeza com aspirador.

Eles são mestres nisso, mas a sensação que tenho é de que meu ouvido médio e meu nervo facial serão sugados pelo aspirador.

Bota covardia minha nisso.

E o interessante é que meu medo é só físico. Como é que não tenho medo de ser examinado por um psiquiatra?

Por sinal, quando vou a um psiquiatra e começo a conversar com ele durante as consultas, quem fica com medo de minha retórica é o psiquiatra.

Nenhum comentário: