sexta-feira, 30 de março de 2012



30 de março de 2012 | N° 17024
DAVID COIMBRA


O que não ler

Delfim Netto tinha uma biblioteca com 250 mil livros. Doou-os, todos, à USP. Era o maior acervo particular do Brasil, quase só obras de economia, história, filosofia e geografia. Pouca coisa de literatura.

Óbvio, ninguém lê 250 mil livros. Se você ler um livro por dia, serão 365 por ano, 36.500 em cem anos. Delfim Netto está com 82 anos. Digamos que tenha se alfabetizado aos cinco. Não leria 250 mil livros nem se encarasse três por dia, um pela manhã, um à tarde, um à noite.

Certos livros não precisam ser lidos por inteiro, é claro, sobretudo se não são de literatura. Alguns são de consulta, uns valem só por causa de uma fatia do conteúdo, outros devem ser apenas percorridos, não lidos completamente. Mesmo assim, é possível que Delfim Netto tenha lido 10% da sua biblioteca. Ou seja: 25 mil livros. Um portento.

Minha pequena biblioteca tem cerca de 2% dos livros do Delfim Netto, que inveja dele. Quantos desses li? Mil? Dois mil? Não faço ideia, mas sei que, felizmente, minha capacidade de ler é bem inferior à quantidade de livros que me interessam. Por isso, não posso perder tempo. É preciso estabelecer critérios.

Os autores jovens, por exemplo. Só leio um autor jovem quando ele fica velho. Seria pouco inteligente perder tempo com um autor desconhecido, havendo tantos que são consagrados, mas que ainda não li. Agora, se avanço até, digamos, a centésima página de um livro e concluo que não gostei, fecho-o com estrépito e o ponho de lado para a eternidade. Antes não conseguia fazer isso, tinha de seguir aos bocejos até o ponto final. Hoje, não mais. O tempo urge.

Tempo, tempo, como vou gastar tempo estirando-me nas redes sociais, se ainda não li todos os 10 volumes da lavra de Churchill sobre a II Guerra, que estão a me desafiar em encadernação de couro tingido de vermelho, uma lindeza? Não posso trocar 50 páginas de Churchill por uma hora de Facebook, francamente.

Certos programas de TV também não valem um parágrafo de Ulisses, que tentei ler na adolescência e parei na frase vegetissombras flutuavam silentes na paz matinal. Aquele paralelepípedo de papel continua esperando pelo dia em que me torne mais inteligente e entenda o que James Joyce queria dizer com tudo aquilo. Suspeito que esse dia não chegará.

Há muita coisa para ler e, todos os dias, muita coisa é escrita e publicada, e assim mais aumenta a minha defasagem e a minha ignorância. Esta semana saiu uma pesquisa a respeito disso, do hábito de leitura dos brasileiros.

A cada ano que se vai dezembro abaixo diminui a quantidade de brasileiros que leem livros. O percentual bateu nos 28%, e esses leem, em média, quatro livros por ano. Um a cada três meses. Como será o iletrado brasileiro do futuro?

Outro dia, tive um vislumbre dele, desse novo brasileiro. O todo-poderoso da CBF, o ex-presidente do Corinthians, Andrés Sanchez disse numa entrevista que nunca lê, a não ser um único tipo de livro: sobre o Corinthians. Disse ter 132 livros sobre o Corinthians em casa.

Eis a diferença: Delfim Netto e seus 250 mil livros de não ficção; Andrés Sanchez e seus 132 livros sobre o Corinthians. Cada qual com seu acervo, cada qual com seus predicados. Delfim Netto, um homem do passado; Andrés Sanchez, o brasileiro do futuro. O Brasil tem tudo para vencer campeonatos de futebol.

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