sábado, 31 de março de 2012



31 de março de 2012 | N° 17025
NILSON SOUZA


O cérebro e as pernas

Fila de autógrafos é melhor do que de INSS. A faixa etária costuma ser mais ou menos a mesma, mas as pessoas têm outro astral, não falam só dos seus achaques – falam também dos achaques do autor, que amanhã certamente terá que se virar com uma tendinite, mas está lá firme, tentando recordar o nome do portador daquele sorriso indecifrável que o saúda com intimidante intimidade.

Mas no meio da fila também podem ocorrer situações embaraçosas. Outro dia fui cumprimentar o Verissimo, que esperava pacientemente pela assinatura da Celia Ribeiro no seu O Jornalista Farroupilha, e o sujeito que estava na frente dele me fuzilou com um risinho inquiridor:

– Não estás te lembrando de mim, né?

Olhei para o Verissimo, pedindo socorro, mas ele fez cara de paisagem. Tive que encarar novamente o homem e dizer:

– Acho que me lembro, sim... Você trabalhava na...

O desconhecido interrompeu as minhas reticências:

– Não! Não! Não! Nunca trabalhei contigo. Eu jogava bola contigo.

Bah, faz tempo que não entro em campo. Dei uma rápida revisada na minha adolescência, mas não encontrei o sujeito lá. Então ele me atalhou novamente.

– Nós jogamos juntos no Banespa.

Antes que eu fizesse “ah”, ele voltou-se para o Verissimo, testemunha atônita daquele diálogo surrealista, e exagerou sobre minha performance em campo:

– Ele era bom de bola, todo mundo queria jogar com ele.

Meio constrangido, olhei para o Verissimo e balbuciei em tom de desculpa:

– Eu já enganava naquela época...

Num esforço para se mostrar interessado, nosso cronista maior questionou o homem da fila:

– Mas ele era cerebral ou esforçado?

O meu comentarista acidental não se fez de rogado. Respondeu de bate-pronto:

– Cerebral, cerebral. Mas era ligeiro, tinha as pernas grossas, bem diferente do que é agora...

E me olhou de cima abaixo, como se eu fosse um frangalho. Ainda tentei estufar o peito, mas percebi que o ambiente não era adequado para manifestações atléticas e acedi conformado:

– Por isso que agora só escrevo.

Meu ex-companheiro de peladas se deu conta de que o papo estava derivando para o lado dos achaques e se corrigiu em tempo, ainda bajulador:

– E escreve bem. Continua cerebral.

Logo diante do Verissimo, o mais cerebral dos nossos colegas de ofício. Vi o Walter Galvani um pouco à frente, abanei para ele e aproveitei a deixa para me retirar, pisando o mais firme que podia com as pernas que tenho hoje.

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