quarta-feira, 7 de dezembro de 2011



07 de dezembro de 2011 | N° 16910
MARTHA MEDEIROS


Vidas secas

Não é Graciliano Ramos, não é sobre o sertão, mas o filme francês O Garoto da Bicicleta também tem na aridez a sua força. Nada é úmido, nada é aguado, nada transborda no filme dos irmãos Jean Pierre e Luc Dardenne.

O garoto Cyrill, interpretado magnificamente pelo ator Thomas Doret, corre ou pedala em quase todas as cenas. Corre atrás de um pai que não o ama, corre atrás de uma infância que lhe foi interditada, corre atrás de promessas de afeto, corre atrás de si mesmo sem nem saber por onde começar a procurar-se.

Em cerca de 90 minutos de projeção, ele dá apenas dois meios sorrisos, o que equivale a um só, e contido. No resto do tempo, carranca, seriedade, perplexidade com um mundo que lhe virou as costas. Só quando enfim aceita a ideia de que tem um pai imprestável que nunca lhe dará os cuidados e o amor necessários, é que percebe que existe um anjo a seu lado.

O mais curioso no filme é o comportamento desse anjo: uma cabeleireira bonitona que poderia estar tocando sua vida sem nenhuma responsabilidade maior a não ser trabalhar e namorar, mas que se compromete a cuidar de um guri surgido do nada, que nem parente é. Por que ela topa abrir mão da sua tranquilidade para ser guardiã de um menino-problema?

Porque sim. Só por isso.

Poderia ser uma história sentimentaloide, mas não há meio segundo de sentimentalismo no filme. Muito estranho. Não estamos acostumados com essa escassez de drama, ao menos não aqui, abaixo da linha do Equador, onde vivemos tudo entre lágrimas e sangue, amores e ódios líquidos.

O filme mostra um menino de prováveis 11 anos, talvez 12, não mais que 13, levando todas as bordoadas que a vida pode lhe dar e mais algumas, e uma moça segurando a barra dele como se fosse uma questão de destino apenas, e não de uma escolha. Ninguém chora, ninguém berra, ninguém reclama, ninguém se exalta. E nessa economia de demonstração externa dos sentimentos, saltam no filme as dores silenciosas.

Elas. As dores silenciosas. As mais contundentes.

É um filme amparado por dois personagens extremamente raçudos. E eu fico me perguntando: quantos raçudos há entre nós? Quantas crianças que tiveram amor sonegado, que levaram essa recusa de afeto como se fosse uma pedrada na cabeça, que se deixaram cair pelo desânimo, cansaço e frustração, mas que tiveram que levantar, mesmo alquebrados, e seguir vivendo do jeito que era possível?

A maior sacanagem do mundo é não dar amor a quem não espera outra coisa. Um filho não espera outra coisa dos pais.

A maior bênção do mundo é receber amor de quem a gente menos espera. E esse amor pode vir de qualquer um.

Nenhum comentário: