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sábado, 3 de setembro de 2011
04 de setembro de 2011 | N° 16815
MARTHA MEDEIROS
Tempos de amnésia obrigatória
A gente procura esquecer para poder ir adiante, mas que espécie de caminho trilhamos quando não enfrentamos a verdade?
Com diferença de poucos dias, uma amiga do Rio e um leitor aqui do Sul me enviaram vídeos protagonizados pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano. Em um, ele dá uma entrevista e, no outro, lê os próprios textos. Ambos os programas estão acessíveis pelo YouTube. Respeito as coincidências: como é que eu ainda não havia me dedicado a esse grande pensador humanista?
Num dos vídeos, Galeano aparece lendo seu texto “El Derecho al Delírio”, onde descreve como seria um mundo ideal, e aproveita para homenagear aqueles que insistem em não esquecer a própria história (a exemplo das mães da Plaza de Mayo) nesses tempos de amnésia obrigatória.
A partir daí não ouvi mais nada, pois considerei marcante essa expressão: tempos de amnésia obrigatória. O assunto mereceria um tratado. Amnésia. É o que explica tanta neurose e tanta infelicidade. A gente procura esquecer para poder ir adiante, mas que espécie de caminho trilhamos quando não enfrentamos a verdade?
Esquecer é uma estratégia de sobrevivência. Somos todos uns esquecidos crônicos. Pra começar, esquecemos de alguns descuidos que sofremos na infância, pois nos educaram para considerar pai e mãe infalíveis.
Dessa forma, nossas dores internas acabam ganhando o apelido de fricotes, só que esses fricotes viram traumas, e esses traumas minam nossa confiança na vida e sustentam os consultórios psiquiátricos, já que esquecer é uma forma de impedir a compreensão absoluta de nós mesmos e alguém precisa nos ajudar a lembrar para nos libertarmos.
Esquecemos os desaforos que tivemos que engolir durante um casamento ou namoro, tudo porque nos ensinaram que o amor deve ser forte o suficiente para aguentar os revezes da convivência, e também por medo da solidão, que tem péssimo cartaz.
Então, para nos enquadramos e nos sentirmos amados e estoicos, esquecemos as mentiras, as traições, os maus tratos, as indiferenças e mantemos algo que ainda parece uma relação, mas que deixou de ser no momento em que enfiamos a cabeça dentro do buraco.
Esquecemos em quem votamos, céticos de que em política nada muda, e em vez de investirmos nossa energia em manifestações de repúdio à corrupção, deixamos pra lá e seguimos em frente conformados com a roubalheira, desmemoriados sobre nossos direitos.
E esquecemos, principalmente, de quem somos. Dos nossos ideais, das nossas vontades, dos nossos sonhos, das nossas crenças, tudo em prol de uma adaptação ao meio, de uma preguiça em desfazer o combinado e buscar uma saída alternativa, de uma covardia que gruda na alma e congela os movimentos. Esquecer de nós mesmos é assinar um contrato com a resignação.
Obrigada, Galeano, por nos fazer lembrar: a amnésia é uma opção, não é obrigatória.
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