quarta-feira, 14 de setembro de 2011



14 de setembro de 2011 | N° 16825
MARTHA MEDEIROS


Eu não sou passarinho

Convencionou-se que pessoas de boa índole gostam da natureza. Bom, eu gosto muito da natureza, ainda que não seja a candidata ideal para me exilar num sítio ou numa praia deserta por um tempo que exceda o período de férias. Além disso, tenho uma relação pouco amistosa com passarinhos, logo com eles, os representantes oficiais da vida ao ar livre. Se o quesito for esse, não sei se minha índole poderá ser bem avaliada.

Quando criança, os contos de fada tentaram me convencer da prestatividade dos passarinhos. Quando a Gata Borralheira resolveu que iria ao baile no castelo do príncipe mesmo sem ter um trapo decente para vestir, foram os passarinhos que a ajudaram a se transformar numa Cinderela, providenciando tecidos coloridos e customizando as peças. Eles praticamente inventaram a profissão de personal stylist.

No desenho da Branca de Neve, foram ainda mais prestigiosos. Conduziram a mocinha, perdida na floresta, até a casa dos anões, que ela jamais encontraria sem um GPS. E, depois, quando a bruxa malvada a envenenou com a maçã, foram eles que correram até a mina e alertaram os anões para o que estava acontecendo. Twitter pra quê?

Enquanto escrevo esta crônica, às 9h, escuto pássaros. É encantador, se levarmos em conta que estou instalada no 10º andar de um prédio num bairro movimentado da cidade. Como a rua é arborizada e há um parque quase em frente, a passarinhada está garantida. Só que eles não começaram a cantar agora. Estão cantando desde cedo.

Bem cedo. Desde as quatro da manhã, pra ser exata. Eu adoraria acordar com o canto dos pássaros às quatro da manhã se tivesse que levantar para ordenhar vacas, cortar lenha e assar o pão em minha casinha romântica instalada no cenário idílico do campo, mas não levo uma vida romântica: me deixem dormir.

Também não preciso levantar às quatro da manhã para preparar o almoço das crianças e então pegar três ônibus para chegar ao trabalho.

Tivesse essa vida sacrificada que tantos têm, acordar com os passarinhos seria menos aflitivo do que acordar com um estridente despertador. Mas não levo essa vida sofrida, o horário que devo sair da cama é exatamente 6h50min. Só que abro os olhos bem antes disso. Muito antes. Por obra e graça você sabe de quem.

A primavera está chegando e isso é uma notícia alvissareira depois de um inverno tão castigante. É o momento de recepcionar com alegria os inofensivos e belos cantantes matinais, que tanta poesia conferem ao nosso cotidiano. Pena que eu não seja assim tão nobre.

Tenho vontade de abater um por um durante sua sinfonia da madrugada. Só gosto de passarinho em estampas, selos, quadros e fotos (mentira, mentira, nem isso, só estou querendo angariar sua simpatia). Índole nota 7,5.

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