terça-feira, 20 de setembro de 2011



20 de setembro de 2011 | N° 16831
DAVID COIMBRA


Loira, linda e perigosa

Nitócris era loira, linda e perigosa. Era também rainha do Egito, a primeira mulher faraó, provavelmente a primeira mulher governante da história do mundo, uma mulher, quem diria?, comandando uma das grandes civilizações da Humanidade mais de 41 séculos antes dos adventos de Dilma Rousseff, Angela Merkell e Megan Fox. Tudo isso é impressionante.

Mas é secundário. O importante é que tudo isso fazia de Nitócris uma fêmea ainda mais perigosa, o que se tornou fatal para alguns de seus conterrâneos, como veremos a seguir.

Antes de mais nada, há algo a se destacar no caso da rainha: o fato de ela ser loira “de pele rosada”, segundo o abalizado historiador egípcio Maneton. Essa condição a distinguia. Porque os antigos egípcios em geral eram de tez morena. Não negros, como chegaram a suspeitar alguns historiadores; morenos da cor da fruta do jambeiro. Negros eram seus vizinhos núbios, que foram derrotados pelos egípcios durante o reinado do faraó Pepi I, sogro de Nitócris.

Batidos, os núbios viram-se incorporados ao exército de Pepi. Grande aquisição. Os vencidos acabaram se transformando na base do exército vencedor. Eram eles os chamados “arqueiros núbios”, famosos na Antiguidade por sua pontaria certeira e sua ferocidade em combate. A Núbia mais tarde seria chamada de Kush e, muito mais tarde, de Sudão.

Os negros, portanto, vinham da Núbia, encravada ao Sul, ou da Somália e da Etiópia, situadas mais a leste, no Chifre da África, região que hoje é assolada pela fome e pela intolerância religiosa. Quer dizer: os egípcios se relacionavam com os povos de raça negra das vizinhanças, mesclavam-se com eles e, séculos depois, seriam até dominados por eles, mas não eram negros; eram morenos. E essa rainha, loira como uma Scarlett Johansson.

Nitócris, no entanto, não ansiava pelo poder. Ansiava por vingança. Ela só assumiu a coroa porque seu irmão e marido, o faraó Merenré II, havia sido assassinado durante uma revolta popular. Empossada, a beldade tratou de pacificar o país. Ao mesmo tempo, ordenou a construção de um suntuoso salão subterrâneo em seu palácio.

Marcou um não menos suntuoso jantar para a cerimônia de inauguração das dependências, para a qual convidou diversos próceres do país. Compareceram todos, instalaram-se comodamente e, em meio às libações, olharam de um para outro e perceberam que ali reuniam-se justamente os que haviam tramado o assassínio do antigo faraó.

Quando começaram a suspeitar que a coincidência podia não ser coincidência, e sim uma cilada, procuraram pela rainha, mas ela já havia desaparecido. Nitócris estava em outro compartimento, onde existia uma válvula secreta.

Foram suas mãozinhas delicadas de loira que abriram a válvula fazendo com que as águas do Nilo corressem por um canal que desaguava no salão dos convidados. Lentamente, os assassinos do irmão amante da rainha viram com olhos esbugalhados de horror a água preenchendo o espaço do salão hermeticamente fechado.

Esmurravam a porta, arranhavam as paredes. Não adiantava. Não adiantou. Foram cobertos pelas águas e morreram afogados. Consumada a vingança, a loira transferiu-se para outra sala, esta repleta de brasas, onde se suicidou para escapar à reação do populacho ignaro.

Ou seja: nada a movia, nem o poder, nem o dinheiro, nem a fama, nem a glória, nem a admiração dos seus coetâneos ou dos pósteros, nem mesmo o prazer sensual ou a realização da maternidade, nada a movia, senão a vingança.

Nitócris era uma mulher desinteressada, e essa é a grande lição da sua história de idade milenar: existem pessoas despojadas de ganhos materiais no mundo, mesmo que suas motivações morais sejam equivocadas, como o feio sentimento da vingança que incendiava o peito arfante da loira rainha do Egito.

Existem pessoas bem intencionadas, existem políticos que pensam no bem do seu país, há dirigentes de futebol que trabalham só pelo bem do seu clube; há no Brasil quem defenda a Copa só pelo bem que há de fazer a Copa para o Brasil. Sei disso. Uma loira da Antiguidade deu essa lição.

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