segunda-feira, 12 de setembro de 2011



12 de setembro de 2011 | N° 16823
PAULO SANT’ANA


Ansioso reencontro

Os brigadianos descobriram finalmente uma fórmula mágica de forçar o governo a reajustar seus salários.

Mas haja pneus!

Uso um sapato de camurça cinza, calças de veludo cotelê, casaco de couro de carneiro e blusa de malha estampada com capuz, por isso, enquanto houver um tango triste, um samba alegre e se acaso se sucedam agora estes dias ensolarados, tenho boas razões para viver.

Não me falta dinheiro para comprar meus remédios de uso contínuo, consigo por vezes frequentar restaurantes, não me abala o preço dos ranchos no supermercado, por isso, enquanto houver gosto para ler poemas românticos, afundar-me em delícias lendo a biografia de São Francisco de Assis, escrita pelo grande Chesterton, e me aprofundar na leitura sobre a rigorosa disciplina da vida das abelhas, tenho boas razões para viver.

Sobram-me razões para viver se, na Avenida Erico Verissimo, uma senhora larga o volante e vem até mim, engarrafando o trânsito, só para me dar um beijo e me dizer que me adora e que reza por mim sempre que pode, torcendo pela minha saúde e vida. Gratuitamente.

O que não faltam são razões para viver quando continuam a nascer crianças na minha cidade, sem se preocuparem com o futuro sem vagas nos hospitais e nos presídios, prontas a atingir em breve a idade adulta e desfrutar de um metrô que não tive na infância na minha cidade.

Quem sabe estas crianças um dia não voltam a Tóquio de onde eu trouxe uma taça de campeão mundial, não faltam razões para viver escorado na esperança.

Há ótimas razões para viver quando os médicos quase me garantem que me voltarão o paladar e a saliva.

Haverá, sim, estupendas razões para viver num mundo em que não cairão mais torres gêmeas nem prosperarão Iraques e Afeganistões. Quem sabe um mundo que assistirá à tão esperada paz entre palestinos e israelenses.

Manifesto a esperança em um mundo em que os casais se casem mais, se separem menos e só venham a ter filhos aqueles pais que puderem sustentá-los.

Um mundo de alegria e de poesias em que nasçam centenas de Chicos Buarques de Holanda e Neis Matogrosso.

E que, quando este mundo estiver se desenrolando, eu possa estar em alguma paisagem celestial me encontrando e batendo um papo com Noel Rosa e com Cartola, com Mário Quintana e Nélson Rodrigues e integre num canto do céu uma roda de chimarrão com o Jayme Caetano Braun e o Lupicínio Rodrigues.

Ocorre-me que a grande coisa chata na vida é a gente não poder mais se encontrar com os mortos, pessoas que adorávamos não voltamos nunca mais a ver, desce uma cortina sobre os nossos amores e se despede para sempre dos nossos olhos gente muito querida, sem a qual a vida passa sem ser mais a mesma.

Eu, por exemplo, tenho direito de me reencontrar com minha mãe, que morreu quando eu tinha dois anos de idade. Esse é o mínimo direito humano que eu tenho.

E quando me reencontrar com ela, quanto tenho a dizer-lhe! E quanto tenho a relatar-lhe sobre as façanhas que protagonizei para enfrentar a aventura da vida, que teria sido muito mais atraente e menos perigosa se ela não tivesse ido tão cedo dos meus olhos.

Eu tenho de me reencontrar com minha mãe.

É o mínimo direito humano que eu tenho, o de conversar com minha mãe.

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