segunda-feira, 12 de setembro de 2011



12 de setembro de 2011 | N° 16823
L. F. VERISSIMO


Contraste

Em vez de lembrar o que escrevi sobre as torres do World Trade Center no décimo aniversário da sua destruição, vou repetir o que escrevi, na época, sobre o pintor Morandi.

O que o italiano Giorgio Morandi, morto em 1964, tem a ver com os dois edifícios do World Trade Center derrubados em 11/9 de 2001? Absolutamente nada. Foi justamente por isso que a primeira coisa que fiz ao chegar a Paris depois de fugir de Nova York e das ruínas ainda fumegantes das torres foi ir ver uma exposição do Morandi.

Eu sabia exatamente o que ia encontrar. Morandi pintou essencialmente a mesma coisa a vida inteira. Conjuntos de garrafas, caixas, vasos e vasilhames que, ao mesmo tempo, se integravam ao fundo e entre si como formas abstratas, e mantinham sua distinção concreta de sólidos.

Não foi só porque ainda tinha na retina as imagens das torres em chamas que pensei imediatamente nelas diante daquelas caixas e garrafas longilíneas firmemente postas numa superfície real, com volume e peso, e magicamente postas em outra dimensão, a salvo do tempo, da história, até de interpretação.

Os objetos que Morandi reproduzia nos seus conjuntos eram sempre os mesmos; o que ele estava pintando, na verdade, era a sua permanência, enquanto a vida e o pintor passavam por eles. Não eram os objetos, era a sua existência silenciosa que estava nos quadros de Morandi.

Cada pintura era um novo registro daquele mistério, uma coisa existindo, persistindo em existir. O contraste era inescapável com as caixas de ferro evanescentes que eu vira se desmanchando em Nova York, aquelas formas que se declaravam triunfalmente eternas desaparecendo em minutos.

Não aparecem figuras humanas na obra de Morandi. A vida que existe em seus quadros é toda inferida: a mudança na perspectiva de um conjunto, uma ou outra marca de uso na superfície de um dos seus objetos domésticos, um sombreado denunciando a existência de uma fonte de luz em algum lugar fora do quadro.

Nenhum movimento, e tudo se repetindo. O humano só existe na sua obra como contraponto ao que se vê, às coisas reduzidas a elas mesmas e a sua persistência. O humano é tudo na obra de Morandi que não se vê. O próprio pintor interfere o menos possível no seu trabalho e deixa que a obsessão o guie. Ou a única coisa humana na arte do Morandi é a obsessão.

Minha impressão ao olhar seu trabalho era que estava diante do último homem tranquilo do mundo. Na vida parada dos seus quadros havia desprezo pelo drama humano, e eu estava ali atrás daquela tranquilidade.

Queria me convencer da transitoriedade da angústia, o sentimento mais humano do momento, e esquecer as mortes e a destruição. Se pudesse, passaria o dia e a noite ali, armazenando tranquilidade para enfrentar o que estava por vir – mas o museu fechava às cinco e meia.

De qualquer maneira, foi bom saber que os objetos do Morandi continuariam lá – independentemente do nosso olhar, da nossa passagem e da nossa angústia –, sólidos, indestrutíveis, significando apenas sua própria permanência. E silêncio.

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