quarta-feira, 9 de setembro de 2009



Os feriados de Matisse

Obra do pintor francês, exposta na Pinacoteca do Estado, cria ilusão de naturalidade e repouso

ESTAVA BEM grande a fila para ver a exposição "Matisse", na Pinacoteca do Estado. A segunda-feira de feriado ajudava. O tempo tem andado horrível na cidade, mas o Sete de Setembro se abriu com um sol capaz de festejar todas as cores do pintor.

Se quiser um conselho, não se apresse tanto assim para ver a retrospectiva. Há quadros lindíssimos, é claro, mas não muitos. Comparada a uma mostra recente do ano França-Brasil ("Fernand Léger, relações e amizades brasileiras"), a exposição de agora não justifica tanto alarde assim.

Há também um erro de concepção bastante chato, que Fabio Cypriano já apontou aqui na Ilustrada.

Resolveram colocar no mesmo espaço os quadros de Matisse e uma série de obras contemporâneas, feitas por artistas franceses mais ou menos influenciados pelo mestre.

O resultado é confuso e, francamente, devastador. Vendo as imagens no catálogo, até que artistas como Cécile Bart e Philippe Richard parecem fazer coisas bonitas. Mas ali, ao lado da imensa concentração exigida por Matisse, cada obra contemporânea parece agitar-se inutilmente, como uma criança pedindo aos pais que comprem pirulitos em plena fila do museu.

Coisa que acontecia também, aliás. Não é que Matisse seja um pintor "difícil", que a gente fique horas tentando entender que tipo de jogo ele propõe ao espectador.

Ao contrário, o que espanta nessa pintura é que seu "jogo", se posso dizer assim, aflora à superfície do quadro. No "Interior em Nice, a sesta", uma das pinturas mais representativas da exposição, o desafio de Matisse parece ter sido o de concentrar o maior número de cores possível num espaço relativamente pequeno, sem desorganizar as sensações do espectador.

O vermelho-ferrugem do tapete encosta no padrão de oncinha de uma poltrona, onde repousam o branco e o quase salmão do corpo da modelo, enquanto logo acima o calor desses tons se dissipa na janela aberta, respirando em azul-claro e cinza fresco.

Daria para fazer, acho, um esquema bastante rigoroso do equilíbrio entre os tons quentes e os frios nessa tela; ou, se quisermos, entre o frescor e o mormaço dessa sesta, na qual tudo vive intensamente e se encontra em repouso ao mesmo tempo.

Mas a naturalidade dessas pinturas tende quase sempre a repudiar abordagens muito "construtivas" e racionais. Todas aquelas odaliscas e modelos estão numa espécie de paraíso corporal, mais num abandono de desejo saciado do que expressando qualquer intenção de movimento.

Nada mais estranho a essa pintura do que os esforços do futurismo ou do célebre "Nu Descendo uma Escada", de Marcel Duchamp. O "dinamismo da vida moderna", tantas vezes presente na arte do século 20, pode no máximo refletir-se na vibração das cores, ou na mistura entre fundo e figura em que Matisse é especialista.

Daí, sem dúvida, a impressão de que ali "tudo vem à tona", de que tudo é superfície. Se as modelos de Matisse sonham em seu repouso, o sonho é justamente o cenário que as circunda.

Verdade que na exposição também aparecem as gravuras da série "Jazz", bem movimentadas, velozes e despertas. Ainda assim, o que prevalece é o contato direto que estabelecem com a retina do espectador. São como aparições repentinas, e não é por acaso que funcionem tão bem na forma de pôsteres para se ter em casa.

A ironia é que Matisse detestava que o elogiassem pela facilidade de sua execução. Tinha crises de desespero diante de cada trabalho a realizar, conta o crítico David Sylvester em "Sobre Arte Moderna" (Companhia das Letras).

Se, em seus melhores quadros, temos a impressão de assistir a um fenômeno tão natural como o desabrochar de uma multidão de flores, trata-se talvez da ilusão de um espectador apressado.

Mas também, e sobretudo, de uma vitória do artista sobre seu próprio sofrimento e sobre o sofrimento do mundo ao seu redor.

O inanimado e o humano, a roupa e a pele, o tapete e o papel de parede, o interior doméstico e a paisagem que se entrevê da janela, tudo o que se separa e se distingue se torna aqui uma coisa só.

Que a dor de cada um continue dentro de cada um; não será a arte de Matisse que irá expressá-la neste caso. Cada pintura dele vive indefinidamente, num feriado pleno, longe de todos os dias.

coelhofsp@uol.com.br

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