segunda-feira, 7 de setembro de 2009


MOACYR SCLIAR

O congestionamento e o espectador

O carreteiro olhava a cena, sem entender. Quem eram aquelas pessoas? Certamente era gente importante

São Paulo apresenta tráfego congestionado no feriado prolongado do Dia da Independência.
Folha Online

SEGUNDO nos mostra o quadro "O grito do Ipiranga", de Pedro Américo, a proclamação da Independência teve um espectador. O único, aliás, dentre os moradores da pouco povoada região.

Era um carreteiro. Conduzindo sua carreta, puxada por bois, ele vinha vindo pela estradinha, entoando uma melancólica canção, quando, de súbito, viu surgir à sua frente um grande grupo de cavaleiros, homens trajando roupas ricamente decoradas e montando soberbos cavalos.

Arreda, gritou um deles, e o carreteiro, intimidado, tratou de tirar a carreta do caminho, instantaneamente congestionado: outro grupo de cavaleiros se aproximava. À frente deles, um homem ainda jovem, de chapéu e com uma elegante casaca.

Detiveram-se, os dois grupos, e um dos homens entregou ao jovem cavaleiro uma carta. Sem apear do cavalo, ele abriu o envelope, leu a carta, ficou um instante em silêncio e depois, puxando da espada, bradou: "Independência ou morte!". Ao que o grupo todo prorrompeu em aplausos.

O carreteiro olhava a cena, sem entender. Quem eram aquelas pessoas? Certamente era gente importante, mas ele, homem simples, voltado exclusivamente para as lides do campo, não tinha a menor ideia de quem poderiam ser aquelas pessoas.

Suspeitava que tinha presenciado um episódio importante, um episódio que teria, talvez, profundas consequências. Mas o que, mesmo, teria acontecido? "Independência ou morte", bradara o homem, que, claramente era o mais importante daquele grupo, mas o que significariam aquelas palavras?

Bem que ele perguntaria a algum dos cavaleiros, mas não tinha coragem para tanto. Nem houve tempo para isso: minutos depois eles seguiam o seu caminho. O homem trouxe de volta o carro de boi para a esburacada estrada, agora deserta, e seguiu em frente.

Já estava anoitecendo quando ele chegou à casa, um ranchinho de pau a pique na beira do caminho. Entrou, e ali estava a mulher -rodeada pela filharada (cinco crianças, a maior de dez anos)- cozinhando. Como foi o seu dia, ela perguntou.

Bem, disse ele, e pensou em contar o que tinha visto: encontrara um grupo de cavaleiros e um deles, depois de ler a carta que lhe havia sido entregue, puxara da espada gritando "Independência ou morte".

Mas desistiu. Se ele não entendera o que havia se passado, ela também não entenderia. Além disso, estava muito atarefada, preparando o ensopado, e ele, morrendo de fome, queria que ela terminasse de uma vez.

Presenciara alguma coisa importante? Talvez sim, mas não tinha a menor ideia a respeito. Em relação ao mundo, e ao Brasil, ele era apenas um resignado espectador. De mais a mais, não queria fazer especulações a respeito. Queria apenas comer, porque estava faminto, e deitar no catre, porque estava cansado.

No dia seguinte, como de hábito, estaria na estrada, transportando cana em sua carreta. A longa e tediosa jornada de sempre. Mas, pelo menos, ninguém lhe diria para sair do caminho. Que, pelo menos, não estaria congestionado por desconhecidos cavaleiros.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br

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