quinta-feira, 10 de setembro de 2009



10 de setembro de 2009
N° 16090 - PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (INTERINO)


Woodstock crioulo

Esses acampamentos farroupilhas são o nosso woodstock gaudério. Têm barro aos montes. Têm música, peão e prenda se esfregando, gaita de boca. Muita gente não viu sentido em Woodstock e não vê sentido nesses acampamentos.

Agrupamentos não precisam ter sentido algum além do desejo de juntar pessoas com coisas em comum. Os acampamentos se formam dessa vontade de cultuar a tradição. Pode ser só um pretexto, mas é um bom pretexto para reunir um monte de homem em volta do fogo e repetir as mesmas histórias uma noite toda, mentir – como se mente numa roda de fogo – e contar vantagem.

Já fui a um acampamento farroupilha no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. Fiquei chuleando um piquete, onde riam de qualquer coisa, e vi um homem da cidade se aprochegar. Apresentou-se, disse que era crioulo do Saicã, que agora usava calça de friso, mas que fora criado nos campos do Caverá. Sentou-se num mocho e se ofereceu para contar a história da vaca brasina assombrada.

Não era um causo, era uma história. Como havia um certo cansaço com a repetição das mesmas conversas, foi acolhido no piquete. Contou então que lá pelo final dos anos 60 havia uma vaca brasina assombrada saída dos campos do Catimbau. Espichou bem a história, esgarçou o começo, fez entradas de causos paralelos e sentiu que prestavam atenção.

A vaca brasina assombrada aparecia de surpresa, em noites de puro breu, e mugia ao lado dos galpões. Um vulto gasoso. Movia-se na volta como se movem as assombrações. Todos viam a vaca brasina com olhos de bolita, mas ninguém se atrevia a chegar perto. E a vaca vinha e desaparecia como hoje desaparece o Belchior.

E foi assim durante anos da infância daquele homem no Caverá. Dormiam alertas, ele contou, pensando na vaca brasina, mesmo que seu Tibo, conhecedor da história da vaca brasina, assegurasse que o bicho não seria capaz de nenhuma maldade.

O homem narrou a história da vaca brasina, fez uma parada, deu um tempo para que se ouvisse o silêncio do fogo e disse: era isso. Um peão de São Borja quis saber:

– Mas e essa vaca brasina ainda está por lá?

O homem disse que sim, mas que não via a vaca brasina fazia muito tempo, apesar de voltar sempre aos mesmos galpões.

– A vaca estava por ali, com certeza, mas eu não via mais nenhuma assombração.

– Mas como, home? – o peão insistiu.

– Porque virei adulto – falou com voz baixa, tentando parecer Paulo Coelho e tirando proveito dos lampejos de vermelho que o fogo lhe jogava no rosto.

Foi quando alguém gritou:

– Então, abre essa gaita, Nego Ceceu.

A gaita roncou. O homem fez a sua parte, ficou por ali mais um pouco e foi embora com sua calça de friso. Woodstock e os acampamentos são um ajuntamento de adultos que decidem compartilhar memórias da infância que a maioria deles nem tem.

É gente que ainda sente o cheiro de pelego molhado, de bosta de vaca, de pasto seco, de Gamerial, de mogango com leite, de paiol de milho carunchado. Se muitos nunca viveram no campo, não interessa, porque não é preciso ter vivido no campo para ter visto uma assombração.

Acampamentos farroupilhas são um monte de crianças grandes urbanas se divertindo com a fantasia de que todos um dia tiveram um petiço tordilho. Esses piquetes barrentos se prestam para que se viva da lenda, no improviso, sem muito ensaio, mesmo que seja por alguns dias.

Foi assim em Woodstock, por uma única vez, é assim no acampamento crioulo todos os anos. Com uma boa lenda, nem banho faz falta, ou o melhor mesmo é que nem tenha chuveiro por perto.

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