quarta-feira, 9 de setembro de 2009



09 de setembro de 2009 | N° 16089
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (INTERINO)


Suster a deriva

Sou submisso à reforma ortográfica. Escrevo como sempre escrevi, tirando no máximo os acentos de assembleia e colmeia, e depois vejo o texto corrigido por um programa aqui do jornal, ou pela ação do revisor Henrique Erni Gräwer. Confio nos dois, confio mais no Erni.

A reforma apresentou-se de repente para mim como os sapatos de bico quadrado. Estranhei, mas me convenci de que me acostumaria. Quando me dava por acostumado, os sapatos voltam aos poucos a ter bico fino.

Percebo que, além de jornais, revistas e livros, poucos assimilaram a reforma. Os mails que recebo são quase todos com a ortografia antiga, de bico fino. Ninguém leva a sério a nova regra para o hífen.

O hífen é o que mais me atormenta. No final do ano passado, me dediquei a entender por que os executivos de bancos americanos quebrados recebiam bônus e, ao mesmo tempo, procurei decifrar o novo uso do hífen. Até entendi por que os bancos pagam bônus mesmo quando quebram. Mas não consigo captar a lógica do hífen.

Dia desses, vasculhei na internet notícias sobre a implantação da reforma em Portugal. Descobri que lá os países participantes são tratados como aderentes. Que não há esforço do governo para suster a deriva (suster a deriva? Algo como conter a perda de rumo do acordo). E que ninguém sabe quando o acordo entra em vigor. Eis então que decidi trocar mails com o escritor João Pereira Coutinho, cronista da Folha de S. Paulo.

Coutinho conseguiu uma façanha. É um dos grandes cronistas brasileiros hoje. É português, mora em Lisboa. Tem raiva do acordo. Quando escreve para a Folha, tenta adaptar o texto ao português do Brasil. Diz que se esforça para tanto e que a redação do jornal faz o resto. O livro que publicou aqui, Avenida Paulista, tem português de Portugal. Ele e Saramago querem escrever como sempre escreveram. Publico alguns trechos das respostas de Coutinho.

Algum escritor ou intelectual português de expressão aderiu ao acordo e o defende publicamente?

Nenhum inteligente.

Claudio Moreno, professor de português e articulista de ZH, ainda acredita que o acordo será desprezado.

Não creio. A ausência de debate é como as águas paradas de um lago: permite tudo, até doenças.

Saramago rejeita que seus textos sejam alterados no Brasil.

Concordo com ele. O meu livro de crónicas, Avenida Paulista (Record), está em português de Portugal. Ao contrário das crónicas no jornal, entendo que em livro elas devem estar em português de Portugal.

Você diz que gosta do “c’’ de actor. Uma letra pode expressar a identidade cultural da qual você fala?

Identidade cultural e fonética. O “c” é importante porque abre a vogal que o antecede.

Esse acordo expressa uma demonstração de poder do Brasil em relação a Portugal?

Expressa apenas a arrogância de políticos e académicos.

Quem é o autor brasileiro mais lido em Portugal?

Paulo Coelho.

Você tem preferência por algum autor brasileiro?

Qualquer um, excepto Paulo Coelho.

Mudando de assunto: os portugueses sentem saudade do técnico Scolari?

Que pergunta é essa?

Conclui-se, é um facto, que Coutinho também não gosta de Felipão. Até pensei em perguntar se os portugueses não gostariam então de importar o Autuori, que por aqui é que nem a reforma. Mexe em tudo a cada jogo, confunde mais do que regra de hífen e não tem jeito de quem possa suster a deriva.

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