
05 de julho de 2009
N° 16021 - DAVID COIMBRA
Fazia sol e frio na tarde de sábado
Isso aconteceu mais de mil sábados atrás, e ainda lembro bem: fazia um dia ensolarado e frio como têm sido esses dias de inverno porto-alegrense. Mas eu não estava em Porto Alegre; estava em Criciúma.
Não fazia muito tempo que me mudara para lá, o que não me impedia de ter já algumas amizades alvissareiras. Uma delas com um jornalista chamado Ricardo Fabris, que veio a se tornar um dos meus grandes amigos, um irmão.
Naquele sábado, eu, o Ricardo e outros colegas nos lambuzamos com uma feijoada densa como um livro de Kant, e depois saímos a pé pelo Centro. Caminhávamos devagar, deixando a pachorra aquecer ao sol. Ali ao lado havia uma barbearia, mais à frente uma loja de discos, depois uma pequena butique e também um barzinho com mesas na calçada.
O pequeno comércio, o comércio de rua, esse é o símbolo de como deve ser a vida na cidade. Porque, se existe comércio de rua, existe vida na rua. As pessoas caminham pelas calçadas, encontram-se, conversam, a cidade é das pessoas. Em Porto Alegre, salvo algumas aprazíveis ilhas suburbanas, como o Menino Deus e os bairros mais afastados, a vida cada vez mais foge da rua.
Mas aquele sábado. A folhas tantas, o Ricardo bateu-me no ombro e convidou:
– Que tal irmos ver o jogo do Próspera?
O Próspera é o segundo clube da cidade. Um clube de mineiros de carvão, pobre. Nos treinos, os jogadores vestiam camisetas puídas e chutavam bolas velhas. O uniforme do Próspera é parecido com o do Inter e o time é chamado de “time da raça”.
Aceitei o convite do Ricardo. Embarcamos no Fusca verde dele e tocamos para o Estádio Mário Balsini ouvindo uma sonzeira do Police. Ainda não tinha visto um jogo do Próspera. O estádio é pequeno, devem caber umas cinco mil pessoas.
Instalamo-nos num pavilhão de madeira e compramos bergamota e amendoim e dois copos de conhaque. As pessoas conversavam em pequenos grupos, riam, trocavam amenidades. Havia mulheres e crianças por ali, avôs com seus netinhos, parelhas de amigos que, como eu e o Ricardo, estavam no estádio apenas por diletantismo, sem nenhuma pretensão de ajudar o time a vencer.
O adversário do Próspera, acho, era o Ferroviário. Ou o Marcílio Dias. Sei lá. O jogo começou e fui conhecendo os jogadores. Na ponta-esquerda o Próspera tinha um japonês. Nunca vira um japonês jogando bola. O japonês do Próspera corria muito, mas não era levado a sério pelos torcedores, que se riam à larga quando ele pegava a bola. Uma hora o japonês machucou a cabeça e teve de ser medicado. Voltou a campo com uma touca de esparadrapo enfiada até as sobrancelhas, para gáudio da torcida.
Na zaga jogava um mulato com porte de peso pesado chamado Nivaldo, codinome “Churrasco”, devido ao que ele fazia com os atacantes adversários. O companheiro do Churrasco era Ozires, zagueirão que jogou no Cruzeiro de Minas nos anos 70, alguém lembra? Na direita corria Mica, pontinha que veio do Inter. Um dia, um locutor de rádio levou um gancho porque gritou:
– Mica, goooooool!
O centroavante? Bem, o centroavante era coisa séria. Laerte, o Urso. O melhor centroavante que vi jogar. Por Deus. Melhor que Reinaldo, Careca, Ronaldo e Romário. O Urso, porque parecia de fato um urso, caminhando com suas pernas cambotas. Não foi para a Seleção Brasileira e a glória eterna porque só conseguia jogar dentro dos limites de Criciúma. Fora da cidade, se deprimia, errava gol, jogava suspirando.
Fora de campo o Próspera tinha o maqueiro Laranjeira, ídolo da torcida, porque derrubava de sua maca os jogadores do adversário eventualmente lesionados. E o melhor de todos: Acyoli Sanchez, técnico de rara sabedoria, estrategista do quilate de um Napoleão, de um Júlio César, de um Alexandre, que só não galgou a escadaria íngreme da fama nacional, quiçá internacional, porque uma vez, dirigindo um caminhão de gás aqui em Porto Alegre, vinha descendo em alta velocidade a Teresópolis e atropelou quatro freiras que atravessavam a avenida em fila indiana, atirando-as com seus hábitos negros para o alto, matando-as instantaneamente, sem direito ao último suspiro.
Para não ser preso para sempre, Acyoli dirigiu o caminhão até Criciúma, escondeu-o numa mina abandonada e foi treinar o Próspera.
O caminhão ainda está lá, podem procurar, e o Acyoli continua treinando o Próspera. Ganha todos os jogos que quer. Só não ganha mais porque precisa manter-se em anonimato para não chamar a atenção da polícia.
Foi assim aquela tarde no estádio do Próspera. Uma tarde de frio brando e sol sereno, de sorrisos, bergamota e conhaque, uma tarde de amizade e descompromisso. Inclusive com o resultado. Não lembro se o Próspera ganhou ou perdeu. E isso também não tem importância. Como era bom ver futebol sem ter que participar do jogo.
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