sexta-feira, 24 de julho de 2009

O perigoso estado das coisas

Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, o cinema independente está passando pela mais grave crise desde que, há 50 anos, a nouvelle vague deu sentido ao termo

Divulgação


Os atores Jeffrey Kime e Isabelle Weingarten em cena de O Estado das Coisas, de Wim Wenders

WALTER SALLES - ESPECIAL PARA A FOLHA

No filme de Wim Wenders que ganhou o Festival de Veneza em 1982, "O Estado das Coisas", uma equipe de cinema independente para em plena rodagem de uma ficção científica por falta de financiamento.

O que era ficção tornou-se realidade. Em vários países, o cinema independente passa pela maior crise desde que, há 50 anos, a nouvelle vague e realizadores como John Cassavetes deram sentido ao termo. O resultado é, em diversas latitudes, inquietante.

Nos EUA, os estúdios fecharam várias distribuidoras que haviam criado para lançar ou coproduzir filmes independentes. A New Yorker Films, a emblemática distribuidora que levou nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Abbas Kiarostami e mais recentemente Jia Zhang-ke às telas norte-americanas, também cerrou as portas.

Mais de 90% dos filmes apresentados no Festival Sundance no início do ano nunca sairão nos cinemas, por falta de distribuição. Com a crise, é paradoxalmente mais provável que filmes de US$ 150 ou US$ 200 milhões sejam produzidos hoje nos EUA do que um pequeno filme independente de baixo orçamento.

A lógica dos estúdios mudou: produzir menos filmes, com conteúdo já testado, lançados no maior número de salas ao redor do mundo, simultaneamente. Nessa equação industrial, o custo não é um problema. O risco, sim. Resultado: o cardápio cinematográfico norte-americano está se tornando cada vez mais restrito, e o conteúdo, mais conservador.

Em grande parte, "sequels", "prequels" ou adaptações de séries de televisão. A safra excepcional de 2007 ("Onde os Fracos Não Têm Vez", "Sangue Negro", "Não Estou Lá" e "Zodíaco", entre outros) não deve se repetir tão cedo. E dá-lhe "Transformers" 2, 3, 4...

Na Europa, a política cultural instaurada há décadas em países como a França ou a Espanha defende o cinema independente e o protege de um terremoto como esse que os EUA estão vivenciando. Mas, mesmo por lá, a situação é cada vez mais preocupante. A sólida safra de autores em competição em Cannes 2009 ainda é o reflexo de uma situação pré-crise. Como o ciclo de produção de um filme é, em média, de dois anos, pode-se temer pelas safras de 2010 e, sobretudo, 2011.

Com a falta de crédito, produtores e realizadores europeus estão mais dependentes das TVs. E com a privatização das redes, só os longas que respondem a uma lógica de grande público e podem passar em horário nobre encontram rapidamente financiamento. Os outros penam. Como exercício, pode-se imaginar o tipo de filmes que as três redes de Silvio Berlusconi cofinanciam.

Numa Europa em recessão, até realizadores como Milos Forman tiveram filmes em pré-produção suspensos. Mais uma vez, a equação se repete: menos risco, mais previsibilidade, menos diversidade.

Num encontro recente em Berlim, Wim Wenders dizia que, hoje, é provável que um filme como "Asas do Desejo" (1987) não fosse mais financiado. O filme, assim como "Alice nas Cidades" (1974), não tinha um roteiro escrito. Tinha, ao contrário, uma ideia que nutria o filme, e que era desenvolvida a cada dia durante a filmagem. Em grande parte improvisado, "Asas do Desejo" foi viabilizado em um momento em que o processo decisório em torno do cinema independente era outro.

Poucas fontes

Hoje sobram apenas algumas fontes de financiamento, canais culturais independentes como a Arte na França, o Film Four e a BBC na Inglaterra, que ainda se aventurariam em projetos semelhantes. Porém, a maioria desses canais sofreu cortes importantes de orçamento em 2009.

Wenders também se inquietava com a crise da cinefilia: mesmo que um filme como "Asas do Desejo" ainda pudesse ser feito, haveria público para assisti-lo? Lançado com poucas cópias, o filme de autor depende de tempo de permanência nas salas. Em sentido contrário, a rotatividade dos filmes nos cinemas acelera-se a cada ano.

Na Europa como no Brasil, o perfil das salas de exibição tem mudado rapidamente, de salas independentes de rua para multiplexes em shoppings. Nesses novos espaços, o mesmo filme ocupa frequentemente várias salas de exibição.

Mudança de hábito, mudança de público. Foi-se o tempo em que um filme como "Sem Destino" (1968), de Dennis Hopper, ficava 20 anos em cartaz em Paris. A sala onde isso aconteceu, o Cinoche em St. Germain, fechou em 2008. Deu lugar a uma rede de fast-food. Em alguns países, filmes têm saído diretamente dos festivais para as telas das cinematecas, sem passar pelo mercado exibidor tradicional.

É o caso de Kiarostami e Nuri Ceylan na Inglaterra. Seus últimos filmes só chegaram ao público inglês graças ao National Film Theatre -salas de exibição mantidas pelo British Film Institute.

Godard e Truffaut

Voltando ao ponto de partida, a nouvelle vague: Godard e Truffaut instauraram a ideia de que o cinema era uma arte total, o ponto de encontro entre a literatura, o teatro, a pintura, a fotografia, a arquitetura, a filosofia.

Desde então, gerações se formaram tendo o cinema como instrumento de compreensão e desvendamento do mundo. Como seria viver em um mundo em que esses filmes que vão além do simples entretenimento não mais existiriam?

O teatro foi dado muitas vezes como morto - e não parou de renascer desde então. O mesmo foi dito do cinema quando a TV se tornou dominante. A sentença repete-se agora com a internet.

Quando o cinema foi inventado, as primeiras exibições de filmes aconteceram em circos. "O cinema é primo da roda-gigante", disse uma vez Walter Lima Jr. A roda-gigante também foi dada como morta, e nunca morreu. Talvez porque ela nos ofereça uma visão única, panorâmica, do mundo -e a possibilidade do encantamento.

WALTER SALLES, 53, é cineasta, diretor de "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta", entre outros

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