sábado, 25 de julho de 2009



25 de julho de 2009
N° 16042- CLÁUDIA LAITANO


Invasão de domicílio

Poucas instituições são capazes de despertar paixões tão antagônicas quanto a família. Um jogador de sucesso, batendo um bolão na Europa, decide largar tudo porque não consegue viver longe do aconchego familiar, do churrasco na laje, do tempero doméstico, da alegria singela de dormir e acordar perto de quem confia na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Para outro craque igualmente desterrado, livrar-se da família pode ser uma bênção, uma chance de reinventar-se longe do olhar de quem exige sempre mais, o fim das cobranças e das mágoas mútuas, um alívio.

“As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, escreveu Tosltoi. Mas tanto as famílias aparentemente felizes quanto as mais obviamente infelizes podem gerar pessoas dos dois tipos, ou seja, alegres ou amargas – o que apenas comprova que qualquer relação humana desafia a previsibilidade e todo indivíduo é sempre mais do que a soma dos fatores.

O céu ou o inferno, o conforto ou a tormenta, um lugar para voltar ou para fugir de. Podemos imaginar como as outras famílias funcionam, mas saber, mesmo, a gente só sabe da nossa – e olhe lá.

Era assim quando o máximo que sabíamos das famílias dos outros era aquilo que entrevíamos na sala de visitas, aquele espaço especialmente preparado para impressionar os que vêm de fora e dar a impressão de que aquele grupo ali, se não é perfeito, pelo menos mantém uma certa compostura diante dos estranhos. Assim como não andamos de pijamas na frente das visitas não saímos por aí escancarando nossas crises familiares.

Assim como não pisamos na grama do vizinho sem pedir licença, não colamos nossos ouvidos na parede quando eles estão brigando. Às vezes, a disfunção de uma família é tão gritante que as fagulhas são visíveis até para o observador mais desatento, mas, em geral, não estamos sentados no banco da cozinha na hora em que a coisa realmente pega fogo.

Esse relativo pudor em relação à intimidade familiar alheia parece ter sucumbido a uma variedade muito específica de reality shows: aqueles que promovem invasões consentidas de domicílio.

Programas que mostram casais em crise, pais atrapalhados para educar os filhos, famílias que comem mal ou gastam mal o dinheiro ou não sabem como decorar a própria casa ou adestrar seus cachorros viraram uma verdadeira epidemia na televisão. Do nosso sofá, assistimos ao que acontece no sofá dos outros – e nem sempre, ou quase nunca, essa visão é muito edificante.

Talvez programas como o Fantástico escolham exatamente as famílias mais atrapalhadas para nos dar algum tipo de lição: se você não educar bem os seus filhos, eles vão ficar assim, insuportáveis, ou se você não escolher direito com quem vai se casar pode acabar assim, com um bicho-preguiça atirado no sofá e gritando ordens para a patroa, enquanto assiste ao jogo na TV.

O fato é que um profundo mal-estar exala de quase todas essas famílias que aceitam transformar a câmera de televisão em um novo eletrodoméstico da casa, expondo suas miudezas cotidianas de maneira quase obscena.

Talvez porque a única força capaz de emprestar alguma transcendência para as banalidades (e dificuldades) da vida familiar seja exatamente o que nos falta em relação às famílias estranhas que vemos na TV: o afeto.

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