terça-feira, 28 de julho de 2009



28 de julho de 2009
N° 16045 - PAULO SANT’ANA

Morte ficta

Podem não crer, mas só nos últimos 30 dias fui descobrir que amo demais a vida, que é injusto que me sobrevenha a morte justamente quando percebi que a existência me proporciona alguns êxtases de felicidade capazes de me realizar como ser humano.

Eu já sabia, claro, que a felicidade não existe, por ser efêmera.

Mas o que eu não sabia é que esses instantes passageiros de felicidade se constituem exatamente na essência da vida, que eles sozinhos justificam uma existência inteira.

Delirantes instantes de felicidade. O corpo e a alma da gente são tomados por um deleite de delícia incomparável.

Isso deve ser o que os artistas sentem quando lhes sobrevém a criatividade ou quando interpretam a inspiração dos criadores com tal beleza de representação, que a obra parece ainda mais estupendamente realçada.

Descobri também nesses últimos dias por que falo tanto em morte: é o medo pânico de vir a perder pela eternidade este tesouro da vida.

Mudando de ângulo mas não de assunto, uma das minhas obsessões mórbidas é saber como serão meu velório e enterro.

Chego a tremer de medo pela contingência funesta e inevitável de que eu não possa ver os atos do meu funeral.

Por isso celebrei um contrato gratuito com Ibsen Pinheiro. Ele se comprometeu na semana passada que escreverá como interino da minha coluna, descrevendo um ficto velório e suposto enterro meus.

Breve, aqui na coluna, presumidos velório e enterro de Pablo na pena de Ibsen Pinheiro. Será uma maneira astuciosa minha de driblar o meu terror pela morte.

Deste jeito, saborearei pela inspiração do Ibsen a antevisão da morte. Ou seja, sentirei todo o peso da minha morte, no relato necrológico, sem no entanto estar morto.

Ficará marcado no pergaminho da minha pele e no escaninho da minha alma o meu obituário que não houve.

Breve aqui, portanto, a minha morte em vida. Breve aqui, os melhores momentos das minhas exéquias, a falência múltipla dos meus órgãos, mas no entanto a minha vida atestará que meu coração ainda palpita e recebe sopros, isto é, o Ibsen descreverá os atos ficcionais da minha morte, só que no dia seguinte eu estarei ressuscitado, vivo, incólume, pronto para ser feliz ou apto para as piores vicissitudes.

Breve aqui, a carpintaria mágica do Ibsen esculpirá o meu caixão mortuário mas se defrontará ao mesmo tempo com a realidade do meu tablado de movimentações.

Breve aqui, finjo que morro enquanto estou bem vivo.

É delicioso a gente ficar assim tergiversando com a morte, roçando-a perigosamente, driblando-a, distraindo-a, atarantando-a com a promessa de entrega total e confundindo-a por outra face com uma vida resistente e estuante.

Breve, aqui nesta coluna, a dança temerária da morte com a vida, o balé do esqueleto imóvel com o corpo vibrante, vida de Paulo, morte de Pablito e ressurreição de Pablo, um complicado e sublime silogismo.

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