sexta-feira, 24 de julho de 2009



24 de julho de 2009
N° 16040 - DAVID COIMBRA

Nua no rio

Um dia, o imperador Napoleão III entrou cheio de pompa imperial numa exposição semelhante a essa que se encontra aqui em Porto Alegre, no Margs, e deparou com uma pintura de Gustave Courbet. Ficou tão irritado com o que viu que chicoteou a tela, provocando tremor e espanto no entorno. Napoleão III, sobrinho do grande Napoleão, dava-se ares de entendedor de arte.

Provavelmente considerou a pintura de Courbet pornográfica: uma camponesa emerge nua das águas escuras de um rio. Tem a pele rosada e os cabelos castanhos em desalinho. Cruza os braços acima da cabeça, gesto que lhe empina os seios fartos, porém rijos, e deixa-lhe à mostra um suave, quase diáfano, tufo de pelos sob as axilas.

A reação do imperador teve dois efeitos. O primeiro: consagrou Courbet como um artista maldito – em alguns cafés refinados de Paris, os proprietários dos estabelecimentos colaram cartazes nas paredes solicitando aos fregueses que não discutissem Courbet no recinto. Por outro lado, e esse foi o segundo efeito do escândalo, o pintor se tornou popular.

Converteu-se em ídolo dos impressionistas, que tentavam imitá-lo, a despeito da má vontade da crítica. Quando algumas de suas obras foram rejeitadas pela Exposição Universal de 1855, Courbet decidiu ousar.

Organizou sua própria exposição, a primeira mostra individual da pintura francesa, com um detalhe ainda mais inovador: a cobrança de ingresso. Nunca antes na história daquele país um pintor havia cobrado entrada para que seus quadros fossem admirados pelo público.

Existem fotos de Courbet, além de seus autorretratos. Era um homem robusto, enérgico, de barba espessa e negra. Gostava de vinho e de mulheres, o que indica que devia ser boa pessoa. Mantinha casos com as modelos que posavam para seus quadros, vários casos, com várias modelos, o que justificava com uma frase preciosa:

– Não se pode pintar mulheres quando se conhece apenas uma.

Courbet era muito amigo do poeta Baudelaire, que, como ele, também era maldito e também amava as mulheres e o vinho. Baudelaire dizia que o homem que só bebe água tem algo a esconder e, sobre as mulheres, cunhou a seguinte máxima:

“Amar mulheres inteligentes é um prazer de pederasta”.

Baudelaire também devia ser boa pessoa. Mas, fisicamente, era o oposto de Courbet. Baudelaire tinha um aspecto frágil e delicado. Courbet o retratou numa pintura interessantíssima. O poeta lê um livro apoiado à borda de uma mesa de madeira.

Na mesa há uma pena fincada em um tinteiro. Baudelaire está sentado, concentrado na leitura e, em sua face, insinua-se um leve rubor de menino, de guri de apartamento, de poeta, enfim. Um gozador, esse Courbet. Há duas telas dele expostas no Margs, ali na Praça da Alfândega. Retratos de suas irmãs.

Parei diante deles, num sábado desses, e imaginei que Napoleão III também os contemplou um dia, e provavelmente os rechaçou. Há histórias como essa atrás de cada um dos quadros que ficarão pendurados nas paredes do Margs até o dia 30.

Contarei algumas delas numa matéria de domingo próximo. Courbet, Picasso, Van Gogh, Manet, Monet e tantos outros bem aqui, entre nós. Pelo menos por algum tempo, Porto Alegre sentirá o sabor de ser, um pouco, Paris.

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