quinta-feira, 8 de janeiro de 2009



A ASTÚCIA DA IDEOLOGIA

A Revolução Cubana completou 50 anos. Participei, outro dia, da banca de uma dissertação, defendida por Juan Domingues, sob orientação de Dóris Haussen, sobre o mito Che Guevara como fenômeno de comunicação.

O revolucionário argentino está por toda parte. Quanto mais é declarado morto, mais a sua imagem se dissemina. Quanto mais a sua biografia é revisada para destacar que foi um sanguinário ou um fanático, mais ele se consolida como símbolo de uma liberdade impossível. Parece que, eliminada a causa, o efeito anda sozinho. Hegel falava em astúcia da razão.

Talvez estejamos vivendo a época da astúcia da ideologia. Visto que a ideologia defendida por Che não pode atualmente se exprimir com legitimidade pelas vias tradicionais – partidos, discursos, política –, encontra outros meios para se fazer presente. A ideologia já esteve na mente dos homens. Hoje, está no corpo todo.

Por exemplo, no meio das pernas da top model Gisele Bundchen, no já famoso biquíni com a estampa do guerrilheiro. Nada mal como evolução. Poderia o homem de Sierra Maestra imaginar que um dia teria um suporte de divulgação tão íntimo e privilegiado?

Ele queria ganhar corações e mentes. Foi além. A sua imagem aparece também numa tatuagem no corpo de Maradona. Sem dúvida, um lugar menos interessante ou charmoso que o anterior. Mas não menos impressionante como mídia global. Ou nas bandeiras da torcida Camisa 12 do Internacional de Porto Alegre.

Pelo jeito, por essa astúcia suprema, a ideologia, feito um vírus resistente, contamina a cultura de massa contra a qual Che Guevara investia. Vitória da sua ideologia sob a forma de cooptação do inimigo? Como explicar que personagens da sociedade do consumo e do espetáculo se encantem dessa maneira com um ideólogo marxista?

Muito já se anunciou o fim. Há uma obsessão pelo fim. Mas o fim não quer chegar ao fim. Depois do fim do capitalismo, veio o fim do comunismo. Agora, com a crise americana, fala-se no fim do neoliberalismo. Che Guevara teve o seu fim em 1967. Paradoxalmente, desde a sua execução e da foto que o transformou no 'Cristo de Vallegrande', Che não cessa de retornar por caminhos inesperados.

Alguns entendem que se trata apenas de uma boa jogada de marketing, transformando em objeto de consumo um ícone do anticonsumismo. E se fosse o oposto? E se a tal astúcia da ideologia, na condição metafísica de ação sem sujeito, estivesse apropriando-se da sociedade de consumo ou aparecendo como sintoma de uma falta, de uma insatisfação profunda, um desejo incontrolável de algo que não pode ser ou não será?

O mundo nunca mais foi o mesmo desde que Gisele carregou Che Guevara entre as suas coxas. Esse gesto certamente foi mais importante do que os atentados de 11 de setembro de 2001. Ali algo se quebrou. Talvez quando Gisele ajeitou o biquíni, exibindo um sorriso menos profissional e mais utópico, o neoliberalismo tenha dado o seu último suspiro ou o seu primeiro sinal de esgotamento.

Eu não duvidaria de que a tragédia do subprime seja apenas mais um elo na cadeia iniciada por Gisele. É claro que se pode especular sobre o desconhecimento do verdadeiro Che Guevara por parte de quem o tatua no corpo, cola em bandeiras ou estampa em roupas íntimas.

Essa é uma hipótese inquietante. Pois por mais verdadeira que seja, mais prova o que deseja negar. Nada mais perigoso do que um efeito cuja causa morreu.

juremir@correiodopovo.com.br

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