quarta-feira, 28 de janeiro de 2009



28 de janeiro de 2009
N° 15862 - SERGIO FARACO


O caso ebúrneo

Numa cidade em que se contavam nos dedos as pessoas que liam, dr. Archangelo cultivava uma biblioteca com mais de um milhar de obras. Era bacharel em Direito, mas, tendo herdado um despotismo de campo, jamais exercera a advocacia, e enquanto acompanhava, à distância, a proliferação da boiada, dedicava-se à leitura dos clássicos.

Negócios e questões domésticas eram da alçada de procuradores, gerentes e criados. Infenso às visitas, ao lazer clubístico, à política e, em suma, à vida comunitária, raramente era visto, mas a cidade, por considerá-lo um sábio, desculpava-lhe as extravagâncias e até o nomeara presidente de honra de várias sociedades, inclusive do clube, embora nunca tivesse freqüentado qualquer delas e muito menos o clube.

Nos anos 50 veio a falecer, após uma semana de agonia hospitalar. Fez-se o velório no palacete e dir-se-ia que a cidade inteira se comprimia no saguão e nas aléias de saibro do jardim. Como era viúvo, não tinha filhos, parentes próximos e nem mesmo um cacho, ninguém chorava e todos cavaqueavam bem-dispostos, tomando café preto com empadas e outros quitutes, servidos por criados sorridentes. A alegria famulatória se justificava: num preito à fidelidade, o doutor lhes legara importante cabedal.

A fidelidade não sobreviveu às exéquias: no dia seguinte, os criados propalaram ter achado no gabinete do sábio, em compartimento secreto da estante, um pênis de marfim, de dimensões humanas e uso incerto.

No clube, em práticas restritas, discutiam-se as finalidades da peça, no quiosque da praça caçoava à larga o populacho, ao passo que na igreja, em sermão sobre a moral, o padre referiu-se gravemente ao “caso ebúrneo”. Na mesma semana eclodiu um movimento entre as damas da Congregação Mariana, postulando que o morto fosse excomungado, e a questão que se debatia era a da eficácia do anátema, ou seja, se a alma seria alcançada pelo decreto, que ainda esbarraria na burocracia cardinalícia.

Os ex-criados venderam o palacete e o mobiliário francês. Ninguém quis comprar a estante e suas mil obras. O novo morador, pouco afeiçoado à cultura dos séculos, ofertou-as a uma biblioteca local, que as recebeu sob condição – promessa de sigilo –, e a estante maldita tomou o rumo de uma entidade assistencial, para ser transformada em lenha. Na tarde em que esteve na calçada, à espera da carroça, muitas pessoas passaram por ali, alardeando sua indignação ou seu deboche.

Ninguém perdoou o dr. Archangelo. A riqueza e a misantropia, atiçadas pelo caso ebúrneo, cobraram dele um preço mui salgado, o ódio póstumo – conta que, segundo se dizia abertamente na cidade, ele estava pagando com juros: na última viagem, esquecera-se de pôr na mala o seu mais íntimo consolo.

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