quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

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28 de janeiro de 2009
N° 15862 - DAVID COIMBRA


Um Freud e dois Moisés

Um ano antes de morrer, já padecendo de câncer no maxilar, vivendo no doce exílio de Londres, Freud concebeu um livro que o atirou no centro de uma polêmica feroz. Refiro-me a “Moisés e o Monoteísmo”, artigos reunidos, originalmente publicados na revista Imago. São textos agradáveis porém profundos, como soíam ser os textos de Freud.

Um livro interessante. Sobretudo para quem gosta de História. Freud reconstitui a fundação da religião judaica e tira conclusões trepidantes. A primeira e mais controversa: Moisés não era judeu, e sim egípcio.

Na verdade, um importante príncipe egípcio, muito influente no reinado do faraó Akhnaton. Há pouco menos de 34 séculos, esse Akhnaton instituiu a primeira religião monoteísta do mundo. Aton, o deus sol, era o único deus, não tinha apreço por liturgias, nem por representações pictóricas. Uma revolucionária novidade na velha Antiguidade.

Com a morte do faraó, o banimento de Aton e a volta furiosa do politeísmo ao Egito, Moisés escolheu os hebreus para entre eles disseminar sua religião – donde os judeus se autodenominarem “povo escolhido”. Então, Moisés reuniu seus seguidores adotados e marchou para a Palestina, em busca da terra de onde emanava leite e mel. Só que, mesmo tendo sido escolhido, o povo, ansioso para retomar o politeísmo, assassinou Moisés.

O monoteísmo só foi enfim adotado quando um segundo Moisés, que vivia numa fértil região de oásis no meio do deserto, apresentou aos judeus um deus “monstruoso, que vagava pela noite sedento de sangue”: Javé. Os dois deuses, Aton e Javé, se fundiram, bem como os dois Moisés, e assim nasceu o judaísmo.

Todos atacaram Freud depois da publicação de seu livro. Todos: judeus, cristãos e populares em geral. Vou citar algumas injúrias extraídas de uma pequena e ótima biografia de Freud que a L&PM lançou recentemente:

The Palestine Review, de Jerusalém, chamou Freud de Am Haaretz: “Um grosseiro ignorante”. O conhecido filósofo Martin Buber publicou uma refutação descontrolada, classificando a obra de “lamentável, não-científica e fundamentada em hipóteses indemonstráveis”. No Catholic Herald, de Londres, o padre Vincent McNabb escreveu que algumas páginas do livro “levam a questionar se o autor não é um maníaco sexual”.

E acrescentou, ameaçador para 1938, época de führers e duces: “O professor Freud é, como seria esperado, grato à libra, à generosa Inglaterra, pelo acolhimento que recebeu aqui, mas quando reconhecemos nele o defensor despudorado do ateísmo e do incesto, nos perguntaremos se ele será sempre tão bem-vindo numa Inglaterra que ainda se pretende cristã”. Finalmente, alguns anônimos desabafavam assim: “Pena que esses canalhas da Alemanha não o tenham mandado para um campo de concentração, pois lá é o seu lugar”.

Não é só por aqui que as pessoas atacam o autor quando não gostam da obra.

Mas o que interessa é que toda essa fúria foi motivada pelo fato de Freud ter atingido um ídolo de judeus e cristãos. Moisés era, e é, um mito. As pessoas precisam de mitos. Eis a sedução do politeísmo. Tão atraente é a mitologia que os judeus chegaram a retornar ao politeísmo e a erigir bezerros de ouro, e a própria religião cristã, com todos os seus santos e familiares do Senhor, é disfarçadamente um politeísmo.

O futebol também tem seu panteão. E seus mitos. O mais caro dos mitos do futebol do RS, por exemplo, é o chamado “futebol gaúcho”. Ora, o único gaúcho entre os titulares da dupla é Bolívar.

Terá ele “contaminado” todos os outros com o micróbio do futebol gaúcho de raça e luta e força e bibibi? Ou será que é o clima de Porto Alegre? Ou a “cultura guerreira” egressa dos Farrapos?

Nada disso. Todos jogam assim no mundo todo. O futebol sempre precisou de concentração e fôlego, mas nunca prescindiu do talento. Não houve time gaúcho bem-sucedido que não fosse bom.

O “futebol gaúcho”, portanto, existe, sim: como mito, e só como mito. Mas os mitos têm sua força. O de Moisés mantém um povo unido há 3.400 anos, o do futebol gaúcho forma times vencedores há mais de cem. Cada um com seu mito, cada mito com sua função.

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