quinta-feira, 29 de janeiro de 2009



29 de janeiro de 2009
N° 15863A - L.F. VERISSIMO


Falsas escolhas

Não deu para ver a cara do Cheney, mas o Bush ficou impassível ao ouvir a frase do discurso de posse do Obama que mais os atingia. Obama disse que era falsa a escolha entre a segurança e os ideais da nação, condenando o uso de tortura e dos outros métodos ilegais no combate ao terrorismo permitidos por Bush e defendidos por Cheney.

A cara do Cheney devia ser de desdém com a ingenuidade de quem pensa que se pode ganhar uma guerra suja com mãos limpas, ou que haja outra escolha.

Mas a frase foi uma das poucas aplaudidas de um discurso mais sóbrio do que empolgante. E foi pouco comentada depois – embora a acusação que continha seria a mais arrasadora para a posteridade do Dick e do George, se o tal julgamento da História funcionasse.

A frase do Obama se aplica a várias outras escolhas falsas, na História e nas nossas vidas. É falsa a escolha entre combater o crime com eficiência e respeitar os direitos humanos, uma discussão cotidiana entre nós.

É falsa a escolha entre educação de massa sem qualidade e educação de qualidade para poucos, outra questão que nos divide há anos. É falsa a escolha, implícita em muitas biografias políticas, entre ser corrupto e fazer muito e ser ético e não fazer nada.

E, já que estamos no meio desta crise não só econômica como de velhos conceitos, é falsa a escolha entre Estado regulador e ideais democráticos. O Obama, sem querer, também estava se dirigindo aos que insistem em equacionar liberdade de mercado e Liberdade com maiúscula.

Clarice

Há dias escrevi sobre um retrato da Clarice Lispector pintado por De Chirico, em Roma. O Paulo Gurgel Valente, filho da Clarice, e que tem o retrato, me lembrou que ela fala a respeito do quadro numa carta às suas irmãs Elisa e Tânia, que está no livro Correspondência editado há pouco.

Na carta, Clarice comenta que as irmãs devem estar surpresas com a falta de referência ao fim da II Guerra Mudial num bilhete recente. Escreve: “Eu pensava que quando ela acabasse eu ficaria durante alguns dias zonza.

O fato é que o ambiente influiu muito nisso. Aposto que no Brasil a alegria foi maior. Aqui não houve comemorações, senão o feriado, ontem: é que veio tão lentamente esse fim, o povo está tão cansado (sem falar que a Itália foi de algum modo vencida) que ninguém se emocionou demais”.

E depois: “Eu estava posando para De Chirico quando o jornaleiro gritou “È finita la guerra!” Eu também dei um grito, o pintor parou, comentou-se a falta estranha de alegria da gente e continuou-se. Daqui a pouco eu perguntei se ele gostava de ter discípulos. Ele disse que sim e que pretendia ter quando a guerra acabasse... Eu disse: mas a guerra acabou!

Em parte a frase dele vinha do hábito de repeti-la, e em parte do fato de não ter mesmo a impressão exata de um alívio”. No meio da carta, há um desabafo tipicamente claricense para as irmãs: “Sinto verdadeira sede de estar aí com vocês. A água que eu tenho encontrado por este mundo afora é muito suja, mesmo que seja champanhe. Estou preciosa, pelo que vejo...”

Nenhum comentário: