sábado, 31 de janeiro de 2009



31 de janeiro de 2009
N° 15865 - CLÁUDIA LAITANO


A quadratura do circo

Já pensou morar em Liverpool na mesma época em que uma banda chamada The Beatles fazia seus primeiros shows no Cavern Club? Ou ter um apartamento na Rua Montenegro e tomar chope todos os dias ao lado de Vinicius e Tom – inclusive naquela tarde aparentemente igual a todas às outras em que os dois tiveram a ideia despretensiosa de compor uma musiquinha em homenagem às meninas de Ipanema?

O professor, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik, que esteve em Porto Alegre esta semana participando de um bate-papo no Santander Cultural, teve uma experiência parecida.

Morando em São Vicente, uma cidadezinha grudada em Santos, Wisnik cresceu vendo Pelé buscar a irmã no colégio, Pelé passeando na rua, Pelé trabalhando três dias por semana em uma loja de eletrodomésticos – mesmo já famoso e campeão mundial, ou exatamente por isso, mas em dimensões pré-históricas na evolução do marketing esportivo.

Wisnik viu Pelé jogar muitas vezes – na base da coisa cotidiana que, por mais que ele já valorizasse na época, nunca lhe parecia exatamente excepcional ou transcendente. Wisnik contou que um amigo dele, mais novo e menos afortunado futebolisticamente, costuma dizer, meio a sério, meio de brincadeira, que esse excesso de exposição à excelência, durante tanto tempo e em tão tenra idade, teria deixado marcas profundas na maneira de o professor ver as coisas.

Esse amigo percebe em Wisnik uma mania de procurar sentido em tudo, como se todas as coisas ao nosso redor, mesmo as mais simples e rotineiras, tivessem um significado menos óbvio a ser investigado. Como se em cada jogo trivial do dia-a-dia houvesse, se não a presença, pelo menos a possibilidade de um Pelé – exigindo não só atenção, mas uma constante disponibilidade para o estranhamento e a análise.

O livro mais recente de Wisnik, Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil, pode ser definido como um exercício de estranhamento inteligente. Tentando vencer a distância entre a análise acadêmica convencional, desapaixonada, e o envolvimento visceral com o esporte, Wisnik escreveu um ensaio sobre o significado do futebol para torcidas do mundo todo, e do Brasil em particular, desde a perspectiva de um apaixonado – o livro começa narrando sua infância em São Vicente, o futebol de várzea, a opção de torcer pelo Santos.

Mas essa viagem que começa no quintal de casa termina em uma volta ao mundo da bola, passando por algumas das transformações pelas quais o esporte passou desde o início da partida, lá no comecinho do século 20, chegando a uma tentativa de entender o significado do futebol para a autoimagem nacional – o lado “veneno” e o lado “remédio”.

Um dos grandes méritos do livro é a capacidade de interessar até mesmo os leitores irremediavelmente indiferentes ao futebol e suas paixões – caso desta minoria constrangida que vos escreve. Para isso conta o talento do ensaísta, mas não só.

Ouvindo ele falar sobre essa mania de “procurar sentido em tudo”, não como quem busca a resposta que vai encerrar o assunto, mas como quem gosta mesmo é de fazer as perguntas, me dei conta de que essa é uma das melhores definições de inteligência que eu já ouvi.

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