sábado, 17 de janeiro de 2009



18 de janeiro de 2009
N° 15852 - DAVID COIMBRA


A chantagem

Poucos sabem qual é o valor de um botão de duas camadas, goleador. Gus sabia. Tinha o seu. Ademir da Guia. Azul-marinho em cima, branquinho embaixo. Pouco maior do que uma moeda de um real. As bordas do Ademir não eram retas, como as de outros botões vulgares.

Eram meio arredondadas, o que dava ao Ademir botão as características do Ademir que respirava: um e outro eram classudos. Craques. Com Ademir, Gus ganhava todos os torneios do bairro. Os torneios eram disputados por botão: cada guri casava um, o vencedor ficava com todos. Assim Gus aumentava seu plantel.

Mas, um dia, Ademir da Guia sumiu. Gus estava no salão de festas, disputando um campeonato. Jogaram durante horas, ele e os amigos. No fim da tarde, quando foi reunir a delegação, ué? Cadê o Ademir?

Não o encontrava em lugar algum. Os amigos ajudavam a procurar, olhavam sob as mesas, atrás da porta. Nada. Muitos guris haviam passado por ali durante a tarde. Será que alguém roubara o Ademir? Ou o botão rolou pelo chão e caiu em algum ralo, algum desvão?

Gus foi para casa sentindo o peito apertado. Passou a noite pensando no seu goleador. A mãe perguntava o que havia, ele dizia que nada. Como uma mulher haveria de compreender o valor de um botão goleador?

Tomou a decisão de, no dia seguinte, vasculhar o salão outra vez. Antes de dormir, com o ardor dos seus 11 anos, implorou a Deus, Jesus e Nossa Senhora, todos juntos, que o fizessem achar o Ademir.

Na manhã seguinte, acordou cedo. Antes de tomar café, correu para o salão. Voltou frustrado: o salão só abria às 10h. A espera foi difícil. Às cinco para as 10, Gus abriu a porta de casa e teve uma surpresa. O Índio estava ali, parado no corredor.

– Índio!

Incomum o Índio bater a sua porta. Não se tratavam exatamente de amigos. Índio era uns dois anos mais velho e alguns quilos de músculos mais forte. Granjeava a fama de ser brigão. Já fora expulso de duas escolas. O que fazia ali?

– Ia procurar pelo Ademir da Guia? – perguntou. – É. Como você sabe? – Tenho uma boa notícia. – Encontrou o Ademir da Guia?

– Encontrei. – Ah! Que bom! Está aí com você? Onde achou? – Por aí. Mas não está comigo. – Não?

– Não. E acho que mereço uma recompensa por achar o seu goleador, não acha?

Gus arregalou os olhos. Num segundo, compreendeu: Índio roubara o seu botão e agora pedia resgate. Um sequestro! Ponderou sobre a situação: o Índio era bem mais forte do que ele. Resolver a questão no confronto físico não seria boa ideia. Cogitou de apelar para a mãe, mas logo descartou a hipótese. Seria uma vergonha. Não havia jeito. Olhou para o Índio.

– O que você quer? – Cinco botões. – Quê???

– Você deve ter uns 50, não vai fazer falta. Pode escolher os cinco, não me importo.

Ao ver o Índio se afastar, depois da conversa, Gus sentiu-se mal. Sentiu-se... um poltrão. Havia aprendido essa palavra fazia pouco tempo e agora era perfeita para ele. Combinaram de fazer a troca em meia hora. Encontrar-se-iam na rua.

Em casa, Gus catou seus cinco piores botões. Enquanto os colocava no bolso, dava-lhe vontade de chorar. Saiu do quarto. Ao passar pela cozinha, avistou a mãe. Parou. Ela sorriu.

– Mãe... – hesitou. – Se alguém mais forte que a senhora quer obrigar a senhora a fazer uma coisa, o que a senhora faz? A mãe pensou um instante.

– Às vezes a força obriga a gente a fazer coisas que não quer – respondeu, por fim. – Mas às vezes é melhor sofrer as consequências.

Gus ouviu e saiu. A mãe ficou observando-o, pensativa. Na rua, Índio já estava à sua espera. – Trouxe a minha recompensa?

Gus tirou os cinco botões do bolso e os entregou ao sequestrador. Sorrindo, Índio entregou-lhe o puxador de duas camadas. Ademir da Guia. Seu goleador.

– Fez um bom negócio – comentou Índio, jocoso, e virou-se para ir embora.

Gus ficou olhando para o Ademir da Guia, lindo, lindo, azul-marinho e branco, na palma da sua mão. Índio já se ia, vitorioso, examinando seus cinco botões. Gus sentiu os olhos marejarem, sentiu a garganta se fechar, sentiu a cabeça rodando, então soube o que fazer.

– Índio! – gritou.

Índio se voltou. Gus mostrou-lhe Ademir da Guia entre os dedos. Índio olhou, curioso. Gus ergueu o braço bem alto. Bem alto. E, em seguida, atirou o puxador na laje de pedra com toda força.

O botão se partiu em dois. Índio abriu a boca, incrédulo. Gus respirava pesadamente. Fitava-o com fúria. Deu-lhe as costas. Voltou para casa. Deixou-o ali. Naquele dia, aprendeu que algumas coisas valem mais do que um botão de duas camadas, goleador.

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