sábado, 10 de janeiro de 2009



10 de janeiro de 2009
N° 15844 - PESQUEIRO | LUÍS AUGUSTO FISCHER


A foto do Oliveira

Oliveira Ferreira da Silveira morreu estes dias (leia mais na página seis). Nascido em Rosário do Sul em 1941, ele ganhou este peculiar prenome (uma vez perguntei a ele, não resisti à curiosidade) como uma homenagem de sua família ao médico que o ajudou a nascer, o dr. Oliveira. “Coisa de gente simples”, ele ainda acrescentou, em sentida, compreensiva, delicada referência aos seus.

Foi um destacado militante do movimento negro; foi professor de Português e Literatura; foi uma doce figura, um sujeito sempre de sorriso aberto na cara grande. Publicou poesia desde a juventude e fez questão de insistir no tema identitário negro, numa constância que dá gosto de ver – lê-se sua obra (mal editada e quase inencontrável) e se vê que ele realmente empenhou a vida nessa delicadeza que é pensar sobre a condição de gente comum, como o leitor e eu.

Num poema de 1967, chamado A Foto (está em Anotações à Margem, editado pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, 1994, série Petit Poa), a gente lê essa reflexão breve, que vai aqui como homenagem ao grande sujeito que ele foi (e que agora bem que poderia ganhar edição decente).

Que é uma foto de pessoa morta
para quem a conheceu
em vida?
Em geral coisa opaca e estática
e pouco diz de quem foi.

Mas quando menos se espera
pode mudar-se em cor, em movimento,
sorriso, voz, braços que vêm e cingem
e nós ressuscitamos.

Museu, a ponta do só e o Rio

Estes dias ouvi, em tom de viva reprovação, a história de que alguns visitantes do belo museu Iberê se espantam ao constatar que não há janelas panorâmicas que deem vista do Guaíba a partir de dentro do prédio. A vontade de que houvesse janelas no prédio, para ver o rio, tem a ver com a nossa vontade de olhar para aquilo ali, a partir de posição boa, capaz de descortinar horizonte largo, e não tem nada a ver com uma crítica ao prédio.

É uma legítima vontade de olhar para o que sabemos existir logo ali mas que não aparece direito. (A gente ainda uns anos atrás tinha uma possibilidade de ver o rio e a cidade de cima do morro Santa Teresa; mas o rebaixamento da vida diária, a violência trivial, a bandidagem miúda nos impediram este pequeno prazer localista.)

Assim também se explica, creio, uma parte importante da reação àquele projeto de aproveitamento imobiliário do terreno do antigo Estaleiro Só: aquilo tem que ser para todos, para sempre, e a simples ideia de construir vistas privilegiadas já dá nos nervos.

Pibe, pivete

Estou lendo o livro de memórias de Joel Rufino dos Santos Assim Foi (Se me Parece), publicado pela editora Rocco, de escrita nem tão boa assim, mas com história ótima, incluindo várias lembranças dele sobre a grande figura que foi Nélson Werneck Sodré, uma espécie de tutor de Joel, e a páginas tantas me deparo com uma nota sobre um guri encontrado por ele na Bolívia em 1964, quando o autor estava autoexilado pelo Golpe, de má memória. E diz ele: “(...) fomos admirados pelo pive Garrincha, que sabia tudo sobre a seleção brasileira de 1962”.

Que esquina histórica: exilados brasileiros, descendo da Bolívia para o Chile – que em 64 era uma democracia florescente, até ser chacinada por outro golpe militar, liderado por aquela figura fantasmal em cujo coração sempre vale a pena cravar a simbólica estaca de madeira –, encontram um guri apelidado de Garrincha, nada mais, nada menos.

Garrincha havia sido o grande jogador da segunda Copa que levantamos, precisamente no Chile, em 62 (mais dados na ótima biografia de Ruy Castro sobre ele); “garrincha”, dizem os dicionários, é o apelido nordestino para o passarinho conhecido como cambaxirra, ou ainda como corruíra, coisa mais querida, pequeninho e doce. E Garrincha virou o apelido do guri lá nas alturas andinas, entre a terra do Evo (que não se perca por isso) e a da Michelle.

Mas o meu caso é o pive. Li a palavra e pensei “pibe”, como os platinos chamam guri. Talvez o Joel tenha escrito errado mesmo e a forma seja com “b”. Faz mais sentido, pelos dicionários: o Diccionario da Real Academia espanhola dá “pebete”, não “pibe”; o nosso competente Houaiss anota, como sabemos, “pivete”, oriundo do espanhol “pebete”, palavra esta que designava originalmente uma pasta aromática queimada como incenso.

Em algum momento da história, então, passou-se a chamar ironicamente de “pevete” alguma coisa malcheirosa, e daí se derivou para chamar assim, como “fedorento”, o guri saído dos cueiros, ou, para ser mais atual, saído das fraldas. Como o Garrincha das alturas andinas.

Secretaria da Cultura

A Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre existe há nem faz tanto tempo. Até o começo dos anos 1990, era um departamento da Secretaria de Educação. A elevação do estatuto correspondeu ao período da redemocratização, agora já virado em história simples.

O primeiro titular foi Joaquim Felizardo, que era um professor conhecido na cidade desde os anos 60: militante de esquerda, sobrinho do Prestes, amigo de todo mundo, grande causeur, Joaquim havia ocupado outros cargos antes da secretaria, como a presidência do Cruzeiro, sim, o clube de futebol porto-alegrense.

Aberto à conversa e atento à cidade, Joaquim soube dar curso e prestígio a uma série de iniciativas relevantes para Porto Alegre. Levou para trabalhar com ele gente da melhor qualidade, como Juarez Fonseca e Arnaldo Campos, sem ir mais longe – e o Arnaldo foi quem inventou de oferecer cursos e palestras de literatura pelos sábados de manhã, um dos raros horários em que os teatros da prefeitura estavam à disposição.

Saiu o Joaquim (e lamentavelmente faleceu pouco depois) e entrou o Luiz Paulo de Pilla Vares, jornalista e também militante de esquerda, há pouco falecido. Estávamos já na Era PT de Porto Alegre, e o Pilla, igualmente aberto à conversa e atento à cidade, fez bonito.

Levou para trabalhar com ele gente da maior importância, como Fernando Schüler e Luciano Alabarse, para ficar em apenas outros dois nomes. Participando de um governo com continuidade política e vivendo a energia positiva daqueles tempos, o Pilla empurrou o horizonte da cultura porto-alegrense para mais longe ainda.

Depois dessa breve história, veio a ocupar o primeiro cargo da Cultura da Capital o Sergius Gonzaga. Parceiro do Joaquim Felizardo de anos, amigo do Pilla, ex-diretor da Editora da UFRGS, professor talentoso e grande vocação de jornalista cultural, o Sergius também é um sujeito da conversa e da cidade.

Professor de literatura da UFRGS (meu professor, inclusive), daqueles que levam a sério a arte e a cultura em geral (frequenta com gosto e competência creio que todos os campos de atuação cultural relevantes), ele agora é reconduzido ao cargo no segundo governo Fogaça.

É ótimo para a cidade. A gestão passada, na Cultura, teve grandes acertos: o Sergius manteve os projetos e as pessoas que já tinham mostrado excelência quando era o caso, assim como soube delegar tarefas e enfrentar pessoalmente os desafios mais cabeludos da área, inovando em algumas regiões sensíveis da administração.

Tudo fácil de enumerar aqui, tudo difícil de levar a cabo, ainda mais na seara política, habitat de malas inomináveis, interesses mesquinhos e armadilhas de monte.

Porto Alegre ganha com sua permanência. Fiquei pensando em como fazer este elogio e me dou conta que o mais simples é o mais eficaz: com o Sergius na secretaria, um cara que é do ramo e mostra cotidianamente que faz bem e certo, eu tenho a segurança de que a coisa está em boas mãos, nas melhores mãos. Assim simples: o cara certo para o lugar.

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