
10 de janeiro de 2009
N° 15844 - PAULO SANT’ANA
As obras do acaso
Não me sai da cabeça o acidente de trânsito que anteontem matou duas pessoas e feriu 14 na esquina da Júlio de Castilhos com Coronel Vicente, na Capital.
Aconteceu um fato raro neste acidente: ele não teve nem participação nem omissão humana em seu desenrolar.
Em todos, praticamente todos os acidentes de trânsito, há negligência, imperícia ou imprudência de alguém. Quando não há intenção direta ou indireta, fato que agrava a autoria.
Neste acidente de anteontem, desde logo se afasta a culpa do motorista do ônibus que colidiu com um prédio e incendiou-se: ele teve um mal súbito e portanto estava inconsciente quando espocaram os primeiros movimentos trágicos do acidente.
Os pedestres caminhavam pela calçada ou buscavam atingi-la, o que lhes retira a culpa por descuido, desatenção ou desídia.
Ninguém teve qualquer responsabilidade nas mortes, nos ferimentos e nos danos materiais da tragédia.
Tudo foi presidido por um fator altamente decisivo na vida e no destino das pessoas: o acaso.
Quantas e quantas vidas através dos séculos foram construídas ou destruídas pelo acaso?
Se a mãe e a filha mortas no acidente, que se faziam acompanhar pelo pai e pelo filho, que restaram feridos, estivessem passando pelo local (estavam indo buscar um documento numa repartição pública), se estivessem passando por ali cinco ou dez segundos antes ou depois, não tinham sido vitimados. Foi uma questão de acaso, o que se define chamar de sorte ou azar, algo que nunca foi explicado por qualquer tratado filosófico.
Por detalhe, foram atingidas diversas pessoas pelo ônibus, antes de ele ir chocar-se com o prédio da Rua Coronel Vicente. Em tantas outras alternativas de tempo não estaria passando ninguém por ali, mesmo que tivesse sido no Centro, onde é comum a aglomeração nas ruas.
Se o motorista, ao sofrer o mal súbito, por isso mesmo tivesse tirado o pé do acelerador, o máximo que poderia acontecer era o ônibus colidir com um outro veículo, não haveria vítimas.
Mas o acaso, este personagem misterioso e mítico da existência, este desencadeador de sublimidades e desgraças, impeliu a perna do motorista a impulsionar o seu pé contra o acelerador logo que se desfechou o mal súbito.
Então, por obra do acaso, este ator importante da vida do homem sobre a Terra, fez acelerar um ônibus que tinha por lógico que desacelerar.
E aí o ônibus atravessa todo o leito da avenida, invade o canteiro, derruba coqueiros e vai em busca do choque exatamente contra a família que caminhava sobre a calçada.
Há bilhões de vezes em que as famílias caminham seguras sobre as calçadas. Mas tinha de intervir, desta vez tragicamente, o acaso.
Pelo acaso se ganha na loteria ou se encontra a morte. Pelo acaso, somente pelo acaso, homens e mulheres se conhecem, namoram, casam, têm filhos e oferecem assim novamente ao acaso o destino de seus filhos, netos e demais descendentes.
O acaso determina a sorte ou o infortúnio das pessoas, ele é uma engrenagem importante na vida, por ele se regride e se progride, por ele se sofre e se tem prazer, por ele se afunda na existência ou se arremessa para grandes realizações.
Imagino a confusão que se passa nas mentes do pai e do filho que se salvaram, chorando o fim da mãe e da filha que morreram.
Se não tivessem ido ao Centro naquela hora, se tivessem parado num bar para tomar um refrigerante, se tivessem escolhido a calçada da frente para se dirigirem ao local em que iam tirar o documento, todos estariam salvos e livres da dor cruciante dos sobreviventes.
O acaso, sem que percebamos, é soberano todos os dias nas nossas vidas.
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