
10 de janeiro de 2009
N° 15844 - DAVID COIMBRA
Ele não comia chocolate
Quando entrevistei Figueroa para o livro sobre a história dos Gre-Nais, ele fez uma revelação que me deixou desconfiado. Disse que, em campo, era ele quem orientava o Caçapava:
– Agora vai! Dá o bote! Ou: – Passa pro Claudião!
Ou: – Recua! Recua!
Pensei: esse gringo está se exibindo. Não que duvidasse da categoria ou da integridade do Figueroa. Ao contrário, sempre o considerei um craque iluminado, além de grande pessoa. Mais: tantas vezes o entrevistei que desenvolvemos uma amizade mantida por eventuais trocas de imeils.
Mas os heróis têm a propensão de adornar suas façanhas e, se não têm, sempre encontram quem as adorne por eles. No caso de Figueroa, o mito o ronda desde a sua chegada a Porto Alegre, quando, numa recepção na casa do Luis Fernando Verissimo, ele olhou para uma estrela coruscante no firmamento e declamou o Poema Vinte, de Neruda:
– Puedo escribir los versos más triste esta noche. Escribir, por ejemplo: “La noche esta estrellada, y tiritan, azules, los astros, a lo lejos”...
Os presentes, entre eles Ibsen Pinheiro e o Professor Ruy, suspiraram. Era o sonho realizado dos intelectuais do futebol porto-alegrense: um zagueiro poeta.
Figueroa seguiu cultivando sua própria lenda. Proclamava: – A grande área é a minha casa. Nela só entra quem convido.
Era um zagueiro viril, mas que declamava poesia; um líder latino-americano dos gramados, espécie de Simon Bolívar de calção e camiseta, mas de fala macia, capaz de transformar em suflê os corações das mulheres mais bem casadas da província.
Por todos esses motivos, achei que seria demais. Não era possível que Figueroa jogasse fisicamente por ele mesmo e intelectualmente pelos outros. Mas, na sequência das entrevistas, procurei o próprio Caçapava e, sem que perguntasse, no meio da conversa, ele me contou:
– Era o Figueroa quem me dizia: “Agora vai! Dá o Bote!”, ou “Passa para o Claudião!”, ou “Recua, recua!”
Quer dizer: Figueroa era mesmo Figueroa.
Os que viram Aírton Ferreira da Silva e Calvet jogar juram que eles eram superiores a Figueroa. Pode ser. Mas eu aqui não vi ninguém melhor. Oberdan tinha igual imposição física e liderança, tinha técnica e sabia jogar.
Eram muito parecidos, um e outro. Mas Figueroa possuía mais credenciais. Jogou Copa do Mundo, era o maior da história de toda uma nação. Há um só que poderia se equiparar a Figueroa, dos que vi dentro de uma chuteira, e era um zagueiro e um homem completamente diferente dele: Mauro Galvão.
Galvão era discreto, silencioso e, mais, comedido. Morou na Suíça e, para preservar a forma física de ginasta olímpico, não se concedia nem o prazer de comer chocolate. Não era forte nem alto, não gritava em campo e jamais cultivou a própria imagem, mas fechava a grande área como se fosse a sua casa, instruía e ajustava a defesa inteira como se jogasse com um megafone na frente dos dentes e terminou a carreira com a justa fama de ganhador de títulos por onde quer que passasse.
Como fazia isso tudo? Com uma única arma: com a inteligência. Galvão jogava subraindo espaços dos atacantes inimigos com o seu posicionamento perfeito e orientava os colegas menos pelo grito e mais pelo exemplo. Um jogador de xadrez. Um zagueiro cerebral.
Por tudo isso, confio em Mauro Galvão na sua nova função no futebol. A inteligência não se esvai com a idade, como a forma física. A idade dá requinte à inteligência. O Grêmio acertou ao trazer Mauro Galvão. Rodrigo Caetano é que talvez tenha errado ao ir para o Vasco.
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