sexta-feira, 2 de janeiro de 2009



02 de janeiro de 2009
N° 15836 - JOSÉ PEDRO GOULART


Caráter

Aqui na praia, o Jorge Furtado me empresta o último número da Granta, famosa publicação literária inglesa lançada recentemente no Brasil. A edição tem um artigo do Salman Rushdie e já falaremos dele.

Do Jorge também veio, de presente, um disco com todo o Sérgio Sampaio (se você não sabe quem é, pesquise que vale a pena), um livro, Arlequim, Servidor de Dois Amos, do Carlo Goldoni (nunca vi mais goldoni) e, provando que é eclético, ele ainda me alcançou o CD da menina-prodígio Mallu Magalhães.

O Jorge tem esse espírito de compartilhar as coisas – é impossível ir à casa dele sem que ele mostre uma música recentemente descoberta, um gibi novo, alguma edição literária peculiar.

Diga-se que ele é um sujeito pré-internet, de um tempo em que havia coisas raras e as descobertas dele eram ainda mais valiosas. De todo modo, o caráter propagador do Jorge é muito mais uma forma de diálogo: ele se expressa através do que divulga.

Caráter, aliás, é o tema do artigo do Salman Rushdie na Granta. Ele escreve sobre Heráclito, o filósofo que viveu há 2,5 mil anos e cuja obra permaneceu apenas em aforismos que foram se espalhando em escritos de outros escritores. Um deles, pinçado pelo Rushdie, afirma que “o caráter de um homem é sua sina”: não há como escapar da própria natureza.

Lembrei da fábula da rã e do escorpião. Ao concordar em atravessar o rio com o escorpião nas costas, a rã acaba sendo ferroada por ele, e com isso ambos se afogam. A rã protesta e o escorpião responde: “É a minha natureza”.

Entretanto, a natureza explica muito, mas não explica tudo. O Rushdie procura no acaso, no imprevisível, as razões “sem razões’, e dá exemplos disso no cinema e na literatura. Também indaga, lembrando Borges, que sabia que a história é um jardim de caminhos que se bifurcam: “Não poderia nosso destino ter moldado nosso caráter em vez de o contrário?”

Vinte e cinco séculos nos separam de Heráclito. Nesse tempo todo, muito se discutiu sobre a ideia tentadora de caráter/destino. Outra máxima, porém, essa de Ortega Y Gasset e bem mais contemporânea, diz que “O homem é ele e suas circunstâncias”.

O que no fundo nos leva a uma conclusão mais sucinta (e menos nobre) sobre nós, que é a seguinte: depende.

Bem, mas desde ontem é um ano novo. E eu aqui falando, falando. Lembrei do Dilbert, que, numa daquelas tirinhas geniais, diz o seguinte para o cão Dogbert: “Sabia que a solidão não pode ser curada ouvindo os outros? A gente só se sente vivo e completo quando os outros estão ouvindo você. Sabia disso?” E o Dogbert responde: “Disso o quê?”

Portanto, FELIZ ANO-NOVO, Ô SURDO!

Nenhum comentário: