sábado, 12 de março de 2022


12 DE MARÇO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

OS BÁRBAROS E O OUTRO

Barbaroi era como os gregos chamavam a um povo que capturavam para escravizar, na Trácia, na costa do Mar Negro, atual território de Romênia, Bulgária e Turquia. É o povo cita (trácio), que Heródoto (484-425 a.C.) foi pesquisar e cuja descrição aparece no quarto livro (capítulo) de sua obra Histórias; o pai da História e da Etnografia foi o primeiro a tentar compreender o outro e posteriormente difundir mensagem cultural visando ao fim da guerra. Os demais gregos ouviam o idioma alheio como um bar-bar-bar incompreensível, de onde geraram o onomatopaico até hoje usado, bárbaro, muito revelador. Porém, revelador de quê? Do outro ou de quem o chama de bárbaro?

No livro O Espelho de Heródoto (1980, com tradução de Jacyntho Lins Brandão em 1999), François Hartog examina a representação cultural do outro e as várias formas com que as descrições de povos estrangeiros, sobretudo os citas, tornam-se formas de representar negativamente e afirmar por contraste a identidade grega. Em Heródoto, os citas (e outras etnias) são descritos com características diametralmente opostas às dos helenos, o que os define como os não gregos; assim, afirmam-se as qualidades positivas do narrador e sua cultura diante do outro, que é transformado numa espécie de espelho narcísico, subordinado aos fins do autor grego. Nessa operação, temos como referência apenas o texto de Heródoto, o que é insuficiente para sabermos como eram de fato os citas e outros povos, pois tudo subordina-se a esse objetivo autorreferenciado, no qual o que se revela é o que são ou querem ser os gregos, por contraste com os bárbaros.

Podemos ver na relação entre gregos e o que chamavam bárbaros o modelo para compreendermos a alteridade histórica, ou seja, como a representação do outro explica quem a faz, o dono da fala ou a cultura que alimenta as imagens do outro. Isso nos leva a pensar também a construção da violência no embate com o outro diferente, e a centralidade histórica do olhar senhorial masculino na matriz das narrativas hegemônicas, desde a antiguidade.

Com esse critério, a visão das etnias pode avançar para examinar relações entre gêneros, em que a mulher é representada como o outro para certo olhar masculino, como o bárbaro o foi para gregos. É o caso da narrativa sobre mulher feiticeira, capítulo central da história da ginecofobia, que vem de fonte muito antiga. No Grande Hino a Osíris, literatura do antigo Egito, a deusa Ísis é apresentada como "a hábil em sua língua, cujas fórmulas mágicas não falham" (trad. Emanuel Araújo), a feiticeira, como o foram para os gregos Circe e Medeia, entre outras. A demonização da mulher como bruxa, na era inquisitorial moderna (séculos XV a XIX), levou a Igreja a matar milhares de mulheres, uma das grandes violências da história. Em recente fala do genocida, as mulheres apareceram como o outro "praticamente integradas na sociedade". É quando o bárbaro e a barbárie se evidenciam e mostram quem e o que de fato são.

O outro, a outra e cada um de nós. Mistério e desafio, e o convite para conhecermos a riqueza e a complexidade do que nos constitui.

FRANCISCO MARSHALL

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