17 DE MARÇO DE 2022
CARPINEJAR
Minha vida de agente infiltrado
Eu sou influenciável. Não assisto a filmes de terror antes de dormir que tenho pesadelos. Não gosto de conversar sobre escatologias no almoço ou na janta que perco o apetite. Não falo de nada pessimista de manhã que atraio o azar. Choro lendo a respeito de crimes envolvendo crianças. Meu lado paterno é muito à flor da pele.
Minhas defesas para a imaginação são baixas. É puxar um assunto que já saio da realidade para a fantasia e elaboro cenas e tramas. Todo mundo que é influenciável tem uma capacidade fora do comum de sonhar acordado.
Sem querer, eu cliquei numa notícia online dos cinco homens mais procurados pela polícia do Estado. Por que fiz isso comigo, levando em conta a minha facilidade fisionômica? Observei as fotografias de relance, e foi o suficiente para gerar imagens mentais permanentes. Agora, por onde ando, acho que encontrei um deles.
Acionei um aplicativo do medo dentro de mim. Eu me impressiono com os relatos e descrições e somatizo retratos falados. Vou criando um faroeste interno em minhas passagens pelo interior do Rio Grande. Imprimo o cartaz de "Procurado" em minha alma.
Como eles devem seguir disfarçados em lugares remotos, não acho que irei localizá-los no meio da multidão, na minha rotina porto-alegrense.
Meu GPS do crime fica ligado quando pego a estrada, quando estou num posto de gasolina deserto, ou num município pequeno com 15 mil habitantes, ou em algum restaurante self-service às margens da BR.
Fiscalizo os rostos de quem passa por mim, realizando comparações, antevendo como seriam os semblantes dos criminosos alterados, com as sobrancelhas aparadas, ou com lentes de contato, ou com barba crescida. Também reparo se são chamados pelos apelidos - afinal, o mundo do crime não tem nome e sobrenome.
Não faz ideia de como perco tempo sendo indiscreto. De tanto espiar sem parar desconhecidos, eles me notam e, às vezes, vêm tirar satisfação. Arrumo encrencas desnecessárias, pedindo licença, pedindo desculpa, dizendo que não é nada, que simplesmente mirava o vazio.
Não me dou bem com as mentiras. Não poderia inventar de caçar foragidos nas horas vagas, é um entretenimento perigoso. Não nasci para dissimulação. Não consigo nem em casa. É só minha mulher me olhar firme e conto a verdade.
Quando os meus suspeitos se aproximam de mim para conversar, o batimento cardíaco acelera, já penso que serei desmascarado como delator, já aperto o teclado do celular no bolso à procura de ajuda, já confio que vou morrer e acabar desovado perto de um arroio.
Tenho que controlar os galopes da ansiedade para não telefonar logo para o 190 - é possível cometer um engano e estragar uma vida à toa.
Não me mostrem fotos de nenhum bandido. Desde pequeno, nunca venci no polícia e ladrão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário