terça-feira, 29 de março de 2022


29 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

DEFESA DO ESTADO LAICO

O episódio dos pastores lobistas que atuavam no Ministério da Educação intermediando verbas, suspeita-se, em troca de propinas, expõe outra vez uma distorção que vem se agravando nos últimos anos: a mistura perigosa entre religião e política. A Constituição Federal é cristalina ao estabelecer o caráter laico do Estado brasileiro. Ou seja, União e entes subnacionais têm de manter uma separação inconteste da Igreja em relação à administração pública e aos demais poderes. Isso significa que assuntos de fé, de qualquer corrente ou crença, não podem interferir em temas estatais. A laicidade, ao mesmo tempo, veda distinções ou precedências a indivíduos por serem de determinada religião.

O caso do MEC, que supostamente envolve corrupção, deve ser tratado pelos órgãos de controle e persecutórios competentes. Os fatos, suas conexões e motivações merecem elucidação para verificar a existência de práticas criminosas. Mas também são a oportunidade para que se reflita sobre o quanto tem avançado a influência de visões determinadas pela fé professada em relação a políticas públicas, o que agride a Constituição. É incontestável que essa interferência aumentou no governo Jair Bolsonaro. O presidente da República, não é novidade, elegeu-se com grande apoio de lideranças evangélicas e, em seus discursos, o tom messiânico é recorrente.

Bolsonaro indicou no ano passado para o Supremo Tribunal Federal (STF) o então advogado-geral da União André Mendonça. Cumpriu, como disse e repetiu, o compromisso de escolher alguém "terrivelmente evangélico". Se os princípios da Carta fossem respeitados, Mendonça seria designado especialmente pelo seu conhecimento jurídico e reputação. A sua religião, qualquer uma, seria irrelevante. 

No início do mês, em ato com líderes evangélicos, o presidente disse aos presentes que dirigiria a nação "para o lado que os senhores assim desejarem". Outro claro exemplo de colisão com o texto constitucional. O país tem de ser conduzido de acordo com o interesse público, e não guiado conforme os ideais espirituais de uma parcela da sociedade. O próprio agora ex-ministro da Educação Milton Ribeiro pareceu muitas vezes agir mais norteado pelos seus valores religiosos, preocupado com temas secundários, do que em busca da qualificação do ensino no país.

Por si só, a confusão é temerária. Piora quando aparecem indicativos de irregularidades. Suspeitas como a do MEC sequer são novidade nos últimos meses. Na CPI da Covid, surgiu o nome de um reverendo que teria atuado na intermediação de uma suposta negociação para compra de vacinas, com sinais de superfaturamento e cobrança de propina. É uma nova amostra dos danos desta aproximação indevida entre religião e administração estatal, prejudicial inclusive para as denominações a quem essas pessoas dizem pertencer.

Não se deve generalizar ou alimentar preconceitos pela má conduta de alguns indivíduos, que não representam o todo. A mesma Constituição que exalta a separação entre Igreja e Estado reforça a liberdade religiosa e a proteção aos seus cultos e liturgias. Mas há espaços adequados para isso. Ao mesmo tempo, é notória a crescente influência da numerosa bancada evangélica no Congresso e em outros parlamentos do país. 

O ideal seria que se evitasse confundir credo com a função de legislar. Também entra-se em terreno pantanoso quando há aparelhamento do Executivo, onde critérios religiosos não deveriam ser determinantes para a tomada de decisões ou formulação de políticas. O quadro fica ainda mais delicado quando se usa a evocação da fé para abrir espaços para o toma lá dá cá, o fisiologismo e outras práticas condenáveis.

Critérios religiosos não deveriam ser determinantes para a tomada de decisões ou formulação de políticas públicas

OPINIÃO DA RBS

Nenhum comentário: