03 DE MARÇO DE 2021
DAVID COIMBRA
Exigem muito de mim
Tudo começou com a carteira de identidade. Disseram-me que precisava tirar a carteira de identidade. Eu tinha uns 14 anos e queria fazer alguma coisa para a qual se pedia documento. "É importante a carteira de identidade", insistiam. "Tu tem que tirar a carteira de identidade. Tem que".
Então, lá fui eu para alguma repartição ou delegacia, não lembro bem, só lembro que era ali pela Floresta e havia bancos nos quais a gente se sentava para esperar que fizessem nossa carteira de identidade. Então, depois de cumprir várias etapas burocráticas, aboletei-me num daqueles bancos para esperar o atendimento do funcionário que me entregaria a minha carteira. E esperei. E esperei e esperei e esperei. Eu lia um livro... Que livro era? Aos 14 anos estava na fase do Hermann Hesse, que, definitivamente, não é boa leitura para se esperar pela carteira de identidade.
Então, aborrecido com as horas de espera, fechei o livro e tive uma epifania. Pensei: "Por que, afinal, preciso de uma maldita carteira de identidade? Diga-me", disse para mim mesmo: "Júlio César tirou carteira de identidade? E Alexandre, o Grande, foi grande sem nunca sequer sentar-se numa repartição para obter uma carteira de identidade, não é mesmo? E os grandes filósofos gregos, Aristóteles, Sócrates e Platão, por acaso tinham carteira de identidade?"
Fiz-me essas perguntas e as respondi, e concluí: bilhões de pessoas no mundo nasceram, viveram e morreram sem carteira de identidade. Elas não precisavam se identificar. Elas existiam, e pronto. Se alguém quiser saber quem sou eu, basta perguntar:
- Quem é você?
- Eu sou eu. Ou seja: eu não sou um número, não sou um registro, sou uma pessoa e estou bem ali, na frente da outra pessoa, olho no olho, as gotículas com eventuais vírus contidas pela máscara. Isso é que importa!
Ah, mas tive de tirar a carteira de identidade. O funcionário me chamou e me lambuzou as pontas dos dedos para capturar minhas impressões digitais. Saí de lá no fim da tarde e fui caminhando até a sapataria do meu avô, que ficava na Câncio Gomes. Cheguei lá e mostrei-lhe o documento. Ele deu uma olhada e comentou:
- Tu estás taludo na foto.
Gostei daquilo. Taludo. Senti certo orgulho da minha carteira de identidade. Mal sabia que era só o começo. Depois daquele dia, só o que eles fazem é exigências. Já tirei diversos documentos, carteira de trabalho e de motorista, CPF, título de eleitor, e a todo instante tenho de comprovar algo, onde moro, quanto ganho, se sou casado ou solteiro, e eles querem sempre que envie papéis assinados para algum lugar, e eles pedem que eu abra apepês e sites e me pedem senhas. Deus, como eles gostam de senhas! Tenho um caderno de senhas, já contei isso. Estão todas ali, anotadas, mas, desgraçadamente, algumas não funcionam mais. Eles dizem que a senha perdeu a validade e mandam que faça outra e a senha tem de ser como eles querem, com números e letras e com maiúsculas e símbolos, tipo *&¨%$#@. E mais: eles adoram que eu frequente cartórios, volta e meia tenho de ir a um cartório para que minha assinatura receba um carimbo e aquela carimbada custa algum dinheiro. Parte do meu trabalho é para pagar carimbos e papéis certificando coisas.
Sou uma pessoa muito certificada. Bem mais do que foi Alexandre, o Grande. Está certo: provavelmente não conquistarei o mundo, como ele conquistou. Mas guardarei para sempre, na memória, algo que ele jamais teve: o número inteiro do CPF. Isso ninguém me tira.
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