terça-feira, 1 de julho de 2025



01 de Julho de 2025
CARPINEJAR

Ganhamos o medo da chuva

Há uma música de Raul Seixas, feita em parceria com Paulo Coelho, que tematiza o divórcio com o fim do medo da chuva. É uma letra simbólica, cifrada, sobre aprender a partir. Você aceita se molhar.

Mas a chuva não pode mais ser metáfora para o gaúcho. Virou sinônimo de tragédia, de enchente, de despejo, de falência, de recomeço. Diferentemente do que cantava o Pai do Rock, nós ganhamos o medo da chuva.

Não há como se sentir seguro quando a esperança está reduzida a sacos de areia e argila reforçando as comportas. Estamos em 2025, e nossa maior tecnologia contra a cheia continua sendo barricadas com bolsas de terra.

Dizem que não haverá transbordamento, assim como se dizia que a inundação de 1941 jamais se repetiria. Acreditar em quem? Permanecemos em idêntica vulnerabilidade, um ano após a maior catástrofe ambiental da história gaúcha. "Vendo as pedras que choram

Sozinhas no mesmo lugar." Tentei me lembrar de quando não tinha pavor das torrentes do céu. E me veio à mente a infância. Tomava banho de tempestade, de cachoeira, de mar, de sanga. Não faltaram batizados em minha vida.

De manhã cedo, ao ir para a escola, eu precisava desviar da espuma dos vizinhos limpando as calçadas. Meu pai parecia taxista: não se cansava de lavar o carro para recuperar o brilho de concessionária. Minha mãe regava as plantas com a mangueira. O contato com a água era constante e revigorante.

Eu esperava dezembro para participar da guerra de bexiguinhas. Ela acontecia todo verão, antes das férias escolares, como comemoração para os aprovados no boletim. Montávamos um quartel general na casa de algum amigo. Os únicos pré-requisitos eram uma torneira no jardim, acessível a deslocamentos rápidos, e uma cerca para ocultar nossos planos e servir de trincheira.

Armávamos emboscadas aos colegas distraídos que passavam pela rua. Escolhíamos alvos devidamente vestidos e arrumados, para aumentar o susto e o ultraje. Já antevíamos a vingança - as vítimas logo revidariam. Não tardavam nem meia hora.

Pairava um suspense no ar: de onde viriam as investidas inimigas? Seria artilharia aérea, do alto de um prédio, ou rasteira, por trás dos muros de um terreno baldio? A brincadeira misturava esconde-esconde com caçador. Caminhávamo s atentos, olhando para os lados, marcados pela iminência da represália.

Como não sabíamos o momento exato do confronto, produzíamos bexiguinhas em série e as deixávamos boiando num balde. O segredo do sucesso era molhar a bexiguinha por fora antes de lançá-la. Se estivesse seca, batia nas costas do outro e apenas estourava no chão.

Esse estrondoso fracasso gerava gargalhadas nos adversários e desmobilizava a equipe. Você havia acertado a pontaria - o que não era fácil -, mas sem causar nenhum impacto. Um desperdício de ação e de munição.

Durante o período da trocação, as torneiras do bairro ficavam tingidas pelos elásticos dos restos de bexiguinhas, entregando que ali morava um obstinado e sequioso exército. Sobravam alguns chinelos na lama, de quem não conseguiu retornar ao front para recolhê-los.

Ninguém saía ferido, apenas encharcado. Ninguém reclamava, ninguém se ofendia. Até perder era bom - no fim, você encontrava um jeito de se refrescar e suportar o calor.

Eu amargo uma grande nostalgia do tempo em que nossas batalhas eram imaginárias, exclusivas do faz de conta, com um nervosismo inventado. Quando a água era nossa aliada da graça, e não, como agora, fonte da mais profunda desgraça, capaz de levar tudo o que temos - inclusive as fotografias de criança brincando de bexiguinhas. 

CARPINEJAR

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