
Idosas viviam com ração de gato. Se você não tem família, pode acabar morrendo sozinho. A sociedade não cuida de ninguém. Já que tenho pais de 86 anos, sofro com o descaso aos mais velhos como se arrancassem parte da minha carne.
Houve surtos de episódios entre 2022 e 2023, com um aumento de 855% segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania: quase 20 mil ocorrências em apenas cinco meses de 2023, contra 2.092 no mesmo período do ano anterior.
Em 2025, até 30 de junho, foram contabilizados 332 casos, mantendo uma média de cerca de dois abandonos por dia.
O país envelhece, e cresce junto a negligência com os idosos - obrigados a resistir com uma renda mínima da aposentadoria, incapazes de se deslocar para suprir suas necessidades básicas.
O salto da longevidade não é acompanhado por políticas públicas. Sequer a Previdência protege os pensionistas dos descontos indevidos.
Na zona sul de Porto Alegre, no bairro Nonoai, foram resgatadas duas irmãs, de 90 e 92 anos, que sobreviviam dividindo a ração com seu gato. Ainda se preocupavam em repartir a porção de modo igual com o bichinho.
A intervenção ocorreu na sexta-feira, pela Polícia Civil, a partir de solicitação do Ministério Público.
Elas não compreendiam o que estava errado, mergulhadas no mais fundo desamparo, acreditando que era normal se sustentar com a comida do felino. Estavam desnutridas e adoecidas, com diabetes descompensada, correndo sério risco de intoxicação. Não se encontravam na pobreza, mas na miséria.
Quanto tempo suportaram a mendicância em sua sala-quarto, na indigência da intimidade? Quanto tempo conviveram com o odor de urina, de esgoto, de alimentos podres, com as roupas sujas e as cortinas fechadas, no mais completo blecaute da civilidade? Meses? Anos?
Quantas folhinhas foi preciso arrancar do calendário para que os vizinhos desconfiassem da extrema penúria? Como elas pararam de sair devido à limitação física, ficaram isoladas. Não conseguiam mais fazer compras. Não tinham filhos nem parentes próximos. Jamais recebiam visitas.
Uma alicerçava a outra no impossível. Tudo o que estava naquele ambiente - na mesa, na geladeira, na cama - se equivalia em mofo e passado.
Nada ali dentro estava mais dentro da data de validade. Nem a esperança. As irmãs foram levadas para atendimento médico no Hospital Vila Nova, onde seguem internadas.
O hospital é o único lugar onde elas serão percebidas. Por um breve momento. Pior que a morte é o esquecimento - a morte em vida.
Se um nonagenário famoso e premiado com dois Oscar, como Gene Hackman, morando em mansão num estado próspero como o Novo México, numa nação com mais condições como os Estados Unidos, foi localizado depois de uma semana do óbito, sem ser procurado por ninguém, nem pelos seus três filhos, o que resta para as irmãs anônimas num pequeno apartamento na capital gaúcha?
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