terça-feira, 29 de julho de 2025


29 de Julho de 2025
CARPINEJAR

Aceito permuta

Circula pelas redes sociais minha frase atribuída ao poeta Mario Quintana: "Nunca teremos tempo para nos despedir direito, então capriche nos encontros imperfeitos". Eu a escrevi em 2018, e ela está no meu livro Família é Tudo.

Não sei se Quintana, como excelente tradutor e aforista, continua lendo no céu. Pois minhas aspas foram feitas 24 anos após sua morte. Seria um roubo do além. Um plágio divino.

Talvez devêssemos inventar um neologismo: necroscriptor - junção de "necro" (do grego nekrós, que significa "morto" ou "cadáver") e scriptor (do latim, "escritor"). Aquele que escreve mesmo depois de ter falecido. Nem Machado de Assis confabularia essas peripécias de um "defunto autor".

Confesso que me sinto honrado com a confusão, envaidecido pelo fato de algo da minha lavra ser digno da obra do nosso maior poeta. Minha vontade inicial era nem corrigir: permitir a transferência de autoria como uma medalha, um prêmio literário.

Mas, seguindo o humor pitoresco do bardo gaúcho - que publicava tiradas filosóficas diariamente no jornal, em sua coluna Caderno H -, proponho uma troca, um insólito balcão lírico.

Eu dou minha frase e o Quintana me dá uma sua. Que tal bater figurinhas na escola?

Já cobiço algumas opções da genialidade de Quintana, que colocaria com destaque em minha prosa.

"Amar é mudar a alma de casa." Definiu brilhantemente o frete emocional de quem começa um relacionamento. "A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe." Não poderia ter caracterizado melhor a dúvida como acesso ao mundo interior.

"A imaginação é a memória que enlouqueceu." Quem já fantasiou sobre a própria memória sabe que ela não tem freios. Somos capazes de recordar o que nem aconteceu, e jurar que aconteceu com os dois pés juntos.

"O verdadeiro analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê." Uma ode ao prazer da leitura, contra o desperdício do conhecimento. "Sonhar é acordar-se para dentro." Um incentivo para se escutar mais, e não ser refém de aspirações emprestadas.

Ou aquela estrofe nostálgica de A Rua dos Cataventos: "Da vez primeira em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha".

Talvez sejam os versos mais tristes sobre o envelhecimento e a perda das ilusões, ombreando de igual para igual com Aniversário, de Fernando Pessoa: "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, e a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer".

Ou o mais comovente epitáfio da gratidão paterna, o poema As Mãos de Meu Pai:

"As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis? pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos? Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida".

Fico num dilema sobre qual escolher, tamanhas as prodigalidades do seu raciocínio mágico. Tenho certeza de que ele, apegado ao seu dom, jamais fará a permuta.

Até porque Mario Quintana nunca passará em vão pela nossa lembrança. É nosso eterno passarinho. CARPINEJAR

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