sábado, 6 de junho de 2015



06 de junho de 2015 | N° 18185
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

Sobre todas as coisas

A longevidade empresta naturalidade à morte de pacientes mais velhos

Dizem que viver muito habilita o vivente a conviver com a ideia da morte. Pode ser. Os velhos que adoecem – e as famílias dos velhos que morrem – veem a morte com uma naturalidade que explica até a conversa animada durante o café da madrugada, um momento sempre dissimuladamente agradável nos velórios na casa grande dos senhores da terra.

Conheci seu Sabino muito antes de ele ser o protagonista desse encontro familiar indesejado, quando suspiros esparsos eram as maiores manifestações de inconformismo com o ocorrido. Todos tinham um ar moderadamente grave, mas sem choros incontroláveis nem espaço para faniquitos, nem ninguém anunciando a intenção de ir com ele no caixão que foi fechado com o respeito que ele fez por merecer, sem indagações espalhafatosas sobre o destino dos que ficaram para trás.

Dez anos antes, quando sentou à minha frente para a primeira consulta, tinha aquele ar de poucas dúvidas dos homens sábios que beiram os 80 e ouvem as opiniões de quem quer que seja com cara de “não tente me impressionar”.

Tinha um nódulo de pulmão com menos de 2cm de diâmetro, o que o colocava no estágio I, o grupo ideal para o tratamento cirúrgico do câncer de pulmão, mas lamentavelmente raro, porque depende de uma busca planejada ou de um achado acidental, por ser sempre assintomático.

Com o objetivo de conduzir a consulta de modo que ele concluísse que devíamos operá-lo, mostrei a lesão na tomografia, expliquei como crescia e com que velocidade, e apontei a vizinhança do lobo inferior porque, se fosse invadido, seria necessário remover mais pulmão para extirpar o tumor.

Para não deixar nenhum contra-argumento a descoberto, antecipei-me em esclarecer que o fato de ele não sentir nada se devia à ausência de inervação no interior do pulmão, e que isso significava que, em todo tumor pulmonar com sintomas como dor, por exemplo, queria dizer que a doença invadira alguma estrutura fora do pulmão, e, então, a chance de cura era menor.

Apresentadas as justificativas, parei, à espera de uma resposta. Ele ficou um longo tempo em silêncio e resumiu: “Vou me entregar, mas não pense que é por medo dessa bolinha que duvido muito possa matar um homem como eu, criado no rigor do campo.

Acontece que tenho 12 netos, e não tenho vergonha de dizer que um deles me enfeitiçou, e até faço uma força danada pros outros não perceberem. Pois justo esse entrou na Faculdade de Medicina agora em janeiro. Não posso me atrasar por doença e perder a formatura do guri! Imagina depois, então, ter um doutor só pra eu acreditar, e sem necessidade de florear tanto sobre a minha doença! Se me dá essa garantia, pode me cortar!”.

Cuidar dele foi a dádiva de descobrir o amigo mais puro, capaz de falar sobre todas as coisas, com a espontaneidade de quem tinha uma enciclopédia no coração.


No velório, 10 anos depois, a filha disse que o pai sempre referia uma dívida que tinha com o médico sem nunca contar o que era. Com a nossa conversa remota bem viva na memória, achei melhor enterrar a nossa combinação em segredo. Talvez um dia eu sentisse que valia a pena contar esta história. Então sentiria saudade dele.

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