09
de novembro de 2014 | N° 17978
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
A guardinha
Tem
uma policial que fica todos os dias na rua detrás do colégio do meu filho, aqui
em Boston. É por lá que o levamos à escola. Vamos, eu ou a Marcinha, vamos a
pé, conduzindo-o pela mão. É perto. As escolas do ensino básico e fundamental
são municipais. Você não escolhe onde seu filho vai estudar: inscreve-o numa
espécie de secretaria de educação e eles definem o colégio de acordo com o seu
endereço residencial. Então, as escolas são sempre próximas das casas dos
alunos, ninguém vai de carro. Por isso, a pequena rua atrás da escola do meu
filho é um acesso muito usado pelos pais dos alunos. Donde a guardinha.
Agora
tem o seguinte: essa ruazinha é exatamente isso: uma ruazinha. Há escasso
movimento de carros. Passa um... três ou quatro minutos depois passa outro... e
dê-lhe reticências entre um e outro... e eles rodam devagar, a uns 30 por hora,
se tanto. Quer dizer: a guardinha que fica ali, controlando o trânsito, é um
excesso de zelo da administração pública. Não precisava, por Deus. Mas, todos
os dias, nos horários de entrada e saída dos alunos, lá está ela, vigilante
feito um dobermann.
Ela
é simpática, sorridente e saúda a todos com um good morning vibrante de
animação. Usa cabelos curtos, é retaca e meio gordinha. Parece cheia de
energia. Quando me vê, lá na outra esquina, vai para o meio da rua, estende a
mão num gesto vigoroso e, com um ar grave, detém qualquer veículo que esteja se
aproximando.
Às
vezes, eu e o Bernardo estamos longe, a uns cem metros de distância, mas ela,
incontinenti, segura o trânsito até que atravessemos a rua. Fico constrangido,
ela podia deixar o carro passar, podia deixar 20 carros passarem, que eu ainda
não teria chegado à faixa de segurança onde ela está, mas não adianta: a
guardinha nunca vacila quando pode dar prioridade para o que chama de “minhas
crianças”. E os motoristas esperam, obedientes, sem traço de impaciência.
Não
estou acostumado com esses mimos e, francamente, não vejo problema em dar uma
acelerada para fugir do trânsito quando atravesso a rua, nem de esperar um
pouco na calçada para que os carros passem. Assim, se estou distante e noto que
a guardinha vai deter um carro por minha causa, me dá certa inquietação, estugo
o passo e puxo o Bernardo pelo braço para não deixar que o motorista fique
aguardando muito tempo por mim.
Bom.
Uma manhã dessas, entrei na ruazinha e vi a policial lá adiante, sobre a faixa
de segurança, cuidando do tráfego, que era nenhum. Percebi que ela me viu. E lá
na outra esquina, tão longe, de mim distante, um carro surgiu. A guardinha
estufou o peito, deu três passos e postou-se no meio da rua, disposta a usar
sua autoridade para proteger a nossa integridade física. Ela ia parar o carro.
Eu e o Bernardo poderíamos atravessar a rua e voltar umas 10 vezes, antes que o
carro chegasse perto, mas ela ia pará-lo. Aí fiz o seguinte: não continuei até
a faixa de segurança.
Atravessei
a rua antes, no ponto em que estava. Quando o carro parou, eu e o Bernardo já
estávamos havia muito tempo a salvo, na calçada. Segui caminhando e, ao cruzar
pela guardinha, ela me olhou. Não falou nada, não deu o good morning usual.
Apenas me olhou, e no seu olhar havia tristeza. Mais: havia frustração. Pior:
decepção. Ela estava decepcionada comigo.
Ia
para lá todos os dias, de manhã cedo, com chuva, sol ou neve, tudo só para
preservar a minha segurança e a do meu filho, e eu a desprezara. Ingrato. Um
maldito ingrato, era o que eu era. Deu-me um aperto no coração, tive vontade de
correr até ela e pedir desculpas, jurar que seus préstimos eram indispensáveis
para o meu dia, mas estávamos atrasados. Segui com o Bernardo para o colégio.
Não
foi um bom dia, não mesmo. Mas, na manhã seguinte, me recuperei. Quando cheguei
à faixa de segurança, não havia nenhum carro por perto, e ainda assim parei.
Fiquei esperando no meio-fio até que a guardinha olhasse para mim e, com um
aceno largo, me mandasse atravessar a rua, enquanto olhava para os dois lados,
atenta ao aparecimento de qualquer veículo ameaçador. Atravessei, sorrindo para
ela, respondendo ao seu good morning com entusiasmo de quem se sentia
protegido. E não cheguei à calçada do outro lado sem antes repetir:
–
Obrigado. Muito obrigado por sua ajuda.
Ela
respirou fundo, orgulhosa do dever cumprido. Respirei fundo também. Estava
começando um bom dia nas paragens geladas da Nova Inglaterra.
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