Elio
Gaspari
'Sorriso' mostrou a Paes a alma do
Rio
O
prefeito achou que encarava a greve dos garis com radicalismo de gogó e
produziu uma grande lixeira
As
cidades têm alma, e o prefeito Eduardo Paes parece não entender a da sua. O Rio
tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de baixo. No Império
havia um filho de escravos, veterano da Guerra do Paraguai, que se intitulava
D. Obá 2º d'África. D. Pedro 2º obsequiava-o nas audiências públicas. Houve
Madame Satã, um marginal gentil, brigão, homossexual, que passou boa parte da
vida preso e é um patrono da velha Lapa. E também o Profeta Gentileza, que
pregava pelas ruas e deixava murais nos viadutos da avenida Brasil. O último
desses adoráveis personagens é o gari "Renato Sorriso", aquele que
varria a passarela do samba dançando e alegrou o mundo no encerramento da
Olimpíada de Londres.
"Sorriso"
aderiu à greve dos garis do Rio. Na outra ponta, o prefeito Eduardo Paes teve
seu momento Ronald Reagan. Diante da greve, demitiu 300. Quando a cidade ficou
parecida com Nápoles durante sua terrível paralisação de 2011, aceitou
readmiti-los, pagando os dias parados. O presidente Reagan havia sido ator mas
não fazia teatro, demitiu 11 mil controladores de voo, quebrou a greve e nenhum
deles retornou ao emprego. Depois do recuo, Paes chamou grevistas de
"delinquentes". Nisso, a cidade continuava imunda pois, ao contrário
de Reagan, que armou um plano B, a prefeitura entrou só com a agressividade do
gogó. Disse que a greve era coisa de 300 garis. Tudo bem. Se fosse assim, cada
um deles deveria ganhar R$ 100 mil por mês pois, quando pararam, a cidade virou
um lixo.
Desfeita
a patranha, reconheceu-se que o movimento envolveu pelo menos 30% dos 4.000
servidores. Em vez de tentar um caminho que o levou ao fracasso, poderia ter
acompanhado a alma do Rio, evitando a linha do posso-logo-faço. Filmado
arremessando pedaços de fruta na rua, explicou que jogou-os na direção de uma
lixeira longínqua "ou para que um de seus assessores fizesse o descarte em
local adequado". Fica criada assim a categoria de assessor de descarte, ou
gari de prefeito. Seria mais fácil cantar: "Viver é arte. Errar faz parte".
Brigar
com gari pode não ser uma boa ideia, mas, quando um prefeito está de um lado e
um sujeito como "Sorriso" está do outro, ele deve pensar duas vezes.
TERROR
O
ministro Ricardo Lewandowski recebeu uma carta de um advogado que defende a banca
no julgamento pelo STF do processo dos poupadores tungados nos planos
econômicos. Dizia o seguinte:
"A
prevalência do entendimento até agora adotado por numerosas decisões judiciais
provocará uma convulsão econômica que lançará o país numa coorte de horrores
que, sem exagero, irão do desemprego em massa à fome da população mergulhada
nos sortilégios de uma crise econômica que afetará toda a nação."
A
banca da banca deve estar lendo demais sobre a Ucrânia.
BURLE
MARX
Um
carioca de alma exilado em Brasília estava esperando sua hora no aeroporto do
centro da cidade e não acreditou no que viu. Sumiu o jardim de Burle Marx que
ficava na pracinha em frente.
Virou
estacionamento e sobraram só as árvores, para dar sombra aos carros.
SUCESSÃO
Durante
um almoço do andar de cima, no Rio, falava-se nas virtudes de Eduardo Campos
como candidato à Presidência, até que um grande empresário que estava à mesa
perguntou ao garçom:
-Você
sabe quem é Eduardo Campos?
-Não
senhor, respondeu o rapaz, com sotaque nordestino.
O
assunto morreu.
MADAME
NATASHA
Madame
Natasha vai a Brasília pedir aos educatecas do Inep que estudem as mudanças
anunciadas para o sistema de testes do SAT americano. Nos Estados Unidos, os
estudantes podem fazer esses exames em sete ocasiões ao longo de um ano. No
Brasil, Lula e Dilma prometeram duas provas anuais do Enem, mas era lorota.
A
instituição que cuida do SAT anunciou que retirará dos exames os fatores de
"ansiedade improdutiva". Para começar, banindo expressões que são
colocadas nas provas com o propósito de humilhar e confundir os estudantes.
Algumas palavras, como "síntese" ou "empírico", não são
corriqueiras, mas devem ser conhecidas. Outras, como "deletério",
podem ser substituídas. (Por "destruidor", por exemplo.)
Natasha
foi a uma prova do Enem de 2012 e achou coisas assim: "canalizar as
pulsões", "cultura lipofóbica", "sentimentos de
pertencimento" e "biorremediação".
Natasha
teme que o Inep diga que é isso mesmo, porque a doutora Dilma disse o seguinte
há dias:
"Tem
uma infraestrutura muito importante para o Brasil, que é também a
infraestrutura relacionada ao fato de que nosso país precisa ter um padrão de
banda larga compatível com a nossa, e uma infraestrutura de banda larga, tanto
backbone como backroll, compatível com a necessidade, que nós teremos para
entrarmos na economia do conhecimento, de termos uma infraestrutura, porque no
que se refere a outra condição, que é a educação, eu acho importantíssima a
decisão do Congresso Nacional do Brasil em relação aos royalties." (84
palavras em busca de um sentido.)
TRÊS
VIÚVAS DO HAITI NO GAVETEIRO DA JUSTIÇA
Em
2010, durante o terremoto do Haiti, morreram 18 militares brasileiros que
integravam a força internacional que policiava o país. Lula recebeu os caixões
com pompa e circunstância e o governo deu às famílias as pensões a que tinham
direito, bem como um auxílio especial de R$ 500 mil a cada uma.
Encerrada
a marquetagem, começou uma encrenca. Todos os mortos tinham seguro de vida
vendido pelo Bradesco, consorciado com a Fundação Habitacional do Exército. Até
hoje não se sabe o que pode levar um exército a se juntar a uma seguradora
privada. As viúvas diziam que os militares morreram em serviço (o que é óbvio)
e, portanto, tinham direito ao dobro do valor da apólice.
A
seguradora dizia que eles morreram num cataclismo ao qual o contrato não dava
cobertura. Foram para a Justiça e o Bradesco fez acordo com 15 famílias.
Sobraram três, que reivindicam também indenização por danos morais ocorridos
durante a disputa. Como seus maridos foram promovidos post-mortem, são viúvas
de dois generais e um coronel. Com elas não houve oferta formal de acordo, além
de um telefonema.
Desde
2012, um recurso dessas três senhoras está no gaveteiro do Tribunal Regional
Federal 1. Se o Exército não tivesse se associado a uma seguradora que vende
apólices de grupo dentro de suas instalações, a questão estaria resumida a um
negócio privado.
Antonio Prata
IGooglall
Imagina
que saco: você numa churrascaria e um bip alertando que a quantidade de
proteínas foi ultrapassada
Vira
e mexe, me vejo bisolhando o sujeito na mesa ao lado e espremendo o cérebro
feito um limão: de onde eu conheço esse cara? Terá sido meu companheiro no
chalé IV do acantonamento Rancho Ranieri, em 1987? O namorado da prima de uma
ex-namorada, na faculdade? Um passageiro com quem troquei três frases na ponte
aérea, semana passada? Muito em breve, essa e outras questões serão resolvidas
num piscar de olhos. Literalmente: bastará encarar a pessoa através das nossas
lentes de contato digitais e uma legenda aparecerá, como na viseira do Robocop:
"Pedro Arruda, 35, advogado tributarista, vulgo "Goiabão",
roubou seus bonecos do Comandos em Ação na quarta série".
Tudo
estará na rede e a rede estará em nós. Imagine um novo casal tendo aquela
típica conversa sob os lençóis: "Que coisa doida a gente nunca ter se
esbarrado por aí antes... Será que a gente já passou pertinho um do outro em
algum lugar?". Como seremos chipados ao nascer, os namorados poderão ver
as situações em que estiveram mais próximos dando um rápido rewind nos GPSs
pessoais. E já que as lentes filmarão o tempo inteiro, do exame do pezinho à pá
de cal, dará até para assistirem às cenas de seus quase encontros: na infância,
a três assentos de distância, no barco viking do Playcenter; na adolescência,
se cruzando numa passeata dos "caras-pintadas"; numa tarde modorrenta
de 2003, olhando pro painel de senhas do cartório Vampré, em Pinheiros. (Essas
imagens, claro, estarão no vídeo de casamento dos dois, mandado diretamente
para as lentes dos convidados.)
Nem
só pra fora, infelizmente, olhará o Big Brother. Imagina que saco, você numa
churrascaria e um bip alertando que a quantidade necessária de proteínas foi
ultrapassada e é recomendável comer mais fibras. (Neste momento, as alfaces da
travessa piscarão em suas lentes, como pop-ups na tela do computador.) Rodízio
só será um programa viável se você estiver devidamente desplugado.
Se
na ingestão a ferramenta será uma mala sem alça, na digestão poderá ser uma mão
na roda. Sabendo as quantidades de sólidos e líquidos deglutidos e cada detalhe
do seu metabolismo, um aplicativo poderá te dar hora e minuto exatos em que
você terá que ir ao banheiro -uma espécie de Waze corporal, com informações
precisas sobre o tráfego interno.
Confesso
que, quando penso neste futuro próximo, o que mais me atiça a curiosidade não
são as maravilhas possíveis (encontrar doadores compatíveis, unir pessoas com
fetiche por roupas de couro verdes lambuzadas por iogurte de pêssego -light),
mas as pequenas inutilidades. Como, por exemplo, pegar uma caneta Bic e,
através das impressões digitais, descobrir as mãos pelas quais já passou, ver
as fotos e perfis desses desconhecidos cujo único vínculo é uma esferográfica
-e, quem sabe, uma medula óssea ou um fetiche semelhantes. Talvez, quando esse
dia chegar, já não se precise mais de cronistas: cada pedrinha no chão, cada
tijolo na parede, ao serem escaneados, contarão histórias muito mais ricas do
que as que poderemos inventar. Enquanto esse dia não chega, contudo,
continuamos aqui, todo domingo.
P.S.
Nem todo domingo: nas próximas quatro semanas, estarei de férias, olhando uns
tijolos e pedrinhas por aí. Até.
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